ARTÍCULOS

UTOPÍA Y PRAXIS LATINOAMERICANA. AÑO: 22, n°. 79 (OCTUBRE-DICIEMBRE), 2017, PP. 57-69 REVISTA INTERNACIONAL DE FILOSOFÍA Y TEORÍA SOCIAL

CESA-FCES-UNIVERSIDAD DEL ZULIA. MARACAIBO-VENEZUELA.


Processos de formação do capital cultural e resistência de professores- alunos na Amazônia Setentrional

Processes for training cultural capital and resistance of teacher-students in the Northern Amazon Procesos de formación del capital cultural y resistencia de professores-alumnos en la

Amazonía Septentrional

Adalberto CARVALHO RIBEIRO

Universidade Federal do Amapá/UNIFAP/Brasil.


RESUMO


O objetivo é analisar processos de formação do capital cultural e formas de resistência de professores que trabalham no interior da Amazônia brasileira. Eles são alunos do Programa Plano Nacional de Formação de Professores (PARFOR), política pública de formação de professores. Os interlocutores principais são Bourdieu e Lahire. A metodologia se baseia em narrativas autobiográficas e o instrumento foi do tipo memorial. Os resultados apontam para processos singulares, porém plurais, de formação de capital cultural. O grupo de professores investigados tem em comum algumas singularidades, originários do “caboclo ribeirinho” da Amazônia. O que denominamos “processos de resistência” é muito presente.

Palavras-chave: Amazônia; Capital Cultural; Professores; Resistências.


ABSTRACT


The objective is to analyze processes of cultural capital formation and forms of resistance of teachers working in the interior of the Brazilian Amazon. They are students of the National Plan of Teacher Training (PARFOR), public policy of teacher training. The main interlocutors are Bourdieu and Lahire. The methodology is based on

autobiographical narratives and the instrument was of the memorial type. The results point to singular but plural processes of cultural capital formation. The group of investigated teachers has in common some singularities, originating in the “caboclo riparian” of the Amazon. What we call “processes of resistance” is very present.

Keywords: Amazon; Cultural Capital; Teachers; Resistance


RESUMEN


El objetivo es analizar los procesos de formación del capital cultural y formas de resistencia de profesores que trabajan en el interior de la Amazonia brasileña. Son alumnos del Programa Plan Nacional de Formación de Profesores (PARFOR), política pública de formación de profesores. Los interlocutores principales son Bourdieu y Lahire. La metodología se basa en narrativas autobiográficas y el instrumento fue del tipo memorial. Los resultados apuntan a procesos singulares, pero plurales, de formación de capital cultural. El grupo de profesores investigados tienen en común algunas singularidades, originarias del “caboclo ribereño” de la Amazonía. Lo que denominamos “procesos de resistencia” está muy presente.

Palabras clave: Amazonía; Capital Cultural; Profesores; Resistencia.


Recibido: 07-07-2017 ● Aceptado: 09-09-2017


INTRODUÇÃO

Analisar processos de formação do capital cultural e formas de resistência de professores que trabalham no interior da Amazônia brasileira, mas especificamente no estado do Amapá é o objetivo do presente trabalho. Esses professores são alunos do Programa Plano Nacional de Formação de Professores (PARFOR)1, política pública de formação de professores, ofertado na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) pelo governo federal.

A análise da formação de capital cultural de indivíduos revela aspectos de suas origens sociais e trajetórias escolares assim como outras características que sugerem as formas de manifestações das disposições das pessoas.

Quanto às origens sociais, a literatura da Sociologia da Educação, já comprovou sua forte associação com o desempenho escolar. Pierre Bourdieu2 foi quem forjou a categoria analítica capital cultural para confrontar os economistas que viam no aspecto econômico a grande força e peso para o rendimento escolar. Embora não se possa negar a força das estruturas sociais e das condições materiais de existência na vida dos indivíduos, Bourdieu trouxe uma novidade conceitual ao destacar o peso maior para os recursos culturais em detrimento de recursos econômicos.

Revendo a Teoria do Habitus de Bourdieu3, Bernad Lahire4 fez a crítica da categoria conceitual disposições e incluiu elementos importantes da Psicologia Social admitindo a pluralidade de ações como mola central do Homem.

É com Lahire5 que se abre uma porta teórica que permite olhar o “indivíduo social” a partir das disposições que eles constroem em seus processos de socialização. Assim, admite-se que as pessoas estão incorporando de vários modos os recursos sociais que adquiriram na vida, portanto, de modo muito plural.

A opção por professores-alunos universitários do PARFOR se deu em razão das suspeitas de suas origens sociais muito populares e que descenderiam do caboclo ribeirinho6 da Amazônia (o que restou provado na pesquisa), mas ao mesmo tempo, devido ao formato em regime modular, em período de férias, em que esses sujeitos estudam, suspeita-se que eles têm uma capacidade de resistir às “intempéries que a vida lhes reservou”.

A escolha pela Amazônia é muito particular. Trata-se de uma região pouco estudada com as ferramentas e categorias conceituais utilizadas nesta pesquisa. Por outro lado, a região Norte fica na periferia do Brasil e registra índices de desenvolvimento mais baixos se comparados com a regiões Sudeste e Sul do país. Não obstante, a formação econômica-social da Amazônia é muito intrigante e suas raízes, até hoje, tem forte componente cultural de matrizes indígenas. Por essa razão as unidades espaciais de referência são o estado do Amapá e a UNIFAP.


  1. Ministério da Educação. Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior. Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - PARFOR Disponível em http://www.capes.gov.br/educacao-basica/parfor. Acesso em 22/01/2017.

  2. BOURDIEU, P (1998). “Escritos de Educação”, In: NOGUEIRA, MA & CATANI, A (Org.). Escritos de educação. Tradução Magali de Castro. Rio de Janeiro: Vozes.

  3. BOURDIEU, P (1996). Razões práticas: sobre a teoria da razão. 9 ed. Campinas, SP: Papirus.

  4. LAHIRE, B (2002). “O Homem Plural: os determinantes da ação”. Vozes. Petrópolis. Rio de Janeiro. RJ.

  5. LAHIRE, B (2013). O Singular Plural. Cadernos de Sociofilo. Quarto Caderno. Tradução de Thiago Panica Pontes.“Le singulier pluriel”. Dans les plis singuliers du social:individus, institutions, socialisations. Paris: La Découverte.

  6. Caboclo ribeirinho é termo que se refere aos pequenos produtores familiares da Amazônia que vivem da exploração dos recursos da floresta. Os principais atributos culturais são o conhecimento da floresta, os hábitos alimentares e os padrões de moradia.


Os professores-alunos aqui investigados são servidores públicos, todos concursados, de municípios do interior do estado do Amapá e, em tese, tinham tudo para não se tornar professores de carreira na esfera pública governamental. São alunos do curso de Pedagogia e estudam em regime modular durante o período em que deveriam se encontrar de férias, ou seja, os investigados estudam no mês de julho e nos meses de janeiro e fevereiro, nestes intervalos, em regime intensivo submetidos que são a 10 (dez) horas de estudos por dia, de segunda-feira a sexta: eles carregam pedra quando deveriam estar descansando. Por essa razão, chama atenção a capacidade que eles têm de suportar durante 4 (quatro) anos as pressões dos estudos, da família, social e financeira, inclusive. Destaque-se que eles não moram na capital onde está localizada a UNIFAP e precisam de recursos para se manter durante os períodos que vêm para os estudos universitários. Embora eles tenham experimentado e utilizado na UNIFAP formas mais clássicas de resistência, enquanto movimento de categoria ou estudantil como mostrar-se-á adiante, a concepção de “resistência” aqui utilizada vem de Lahire,


A constatação sociológica que somos obrigados a tirar do nosso conhecimento actual do mundo social é que o indivíduo é multissocializado e demasiado multideterminado para que possa estar consciente dos seus determinismos. Deste ponto de vista, é (socio)lógico ver os indivíduos resistir tanto à ideia de um determinismo social. É porque tem grandes hipóteses de ser plural e porque se exercem sobre ele “forças” diferentes dependendo das situações sociais nas quais se encontra, que o indivíduo pode ter o sentimento de uma liberdade de comportamento”7 (Grifos nossos)


Saber quem são os professores-alunos atendidos pelo PARFOR/UNIFAP, a formação de seus capitais culturais e as manifestações de suas disposições individuais, se torna uma oportunidade pertinente e importante até para avaliação do programa, uma vez que o objetivo do PARFOR é induzir e fomentar a oferta de educação superior, gratuita e de qualidade, para professores em exercício na rede pública de Educação Básica. Entretanto é importante principalmente para se descobrir quem são os professores que lecionam nos mais longínquos lugares da Amazônia, nas zonas urbanas e rurais, em comunidades isoladas e que estão a formar futuras gerações residentes na região.

As questões que norteiam a pesquisa são: 1) Quem são os docentes da Amazônia que vem sendo atendidos pelo PARFOR/UNIFAP? 2) Quais suas principais características culturais e como ocorreram seus processos de formação do capital cultural? 4) Quais as suas disposições individuais e o que caracteriza suas formas de resistência?

Este trabalho está dividido em 6 (seções) incluindo esta introdução. Na seção II apresenta-se o PARFOR enquanto um programa governamental e sua oferta pela UNIFAP. Na seção seguinte descreve- se a abordagem metodológica da pesquisa. Na seção IV tem-se as reflexões da problemática a partir do aporte teórico escolhido e na seção V apresenta-se a discussão dos resultados e na última seção as considerações finais.


O PARFOR NA UNIFAP

O PARFOR é um programa emergencial instituído para atender ao disposto no artigo 11, inciso III do Decreto federal nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009 e implantado em regime de colaboração entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), os estados, os municípios, o Distrito Federal e as Instituições de Educação Superior (IES), para formar professores em todo o Brasil que ainda não cursaram a licenciatura plena ou para oportunizar professores a realizarem uma segunda licenciatura.


7 LAHIRE, B (2013). Op. cit., p. 17.


No estado do Amapá (AP) o programa é coordenado pela Secretaria de Estado da Educação (SEED/ AP), por meio do Núcleo de Formação Continuada (NUFOC). Porém, devido ao arranjo jurídico de natureza interinstitucional, e a própria legislação do ensino superior, a gestão pedagógica do programa está sob a coordenação das IES.

O PARFOR, no estado do AP, iniciou suas atividades no segundo semestre de 2009 com duas instituições de ensino superior: UNIFAP e Universidade Estadual do Amapá (UEAP), com 283 professores-alunos matriculados. Conforme o NUFOC8, atualmente (ano de 2016) são três instituições de ensino superior e um Polo da Universidade Aberta do Brasil (UAB) vinculado à UNIFAP que recebem discentes para a formação9. São aproximadamente 1.900 “cursistas”10 matriculados. Destes, 1.569 estão regularmente frequentando os 13 cursos distribuídos em 55 turmas nas três IES receptoras. Na UNIFAP são ofertados os cursos de Artes, Ciências Biológicas, Física, Geografia, História, Letras, Matemática e Pedagogia, todos na modalidade Licenciatura Plena, em regime modular.

Os professores-alunos do PARFOR no AP trabalham em 541 escolas das redes estadual e municipais localizadas na capital e no interior, nas áreas urbanas, rurais, indígenas e quilombolas. Nas áreas indígenas 53 professores-alunos estão distribuídos pelos 16 municípios. A UNIFAP registra, inclusive, matrícula de vários professores-alunos indígenas estudando nas diversas licenciaturas.

A minoria deles trabalha na capital Macapá. Para concluir toda a carga horária e curricular os cursos terminam em quatro anos. Desse modo, os alunos do PARFOR precisam se apresentar na UNIFAP durante oito módulos que funcionam nos meses de julho e de janeiro e fevereiro. Eles, assim, utilizam os seus períodos de férias em busca desta qualificação de ensino superior.

Para esta pesquisa o público alvo investigado específico são os professores-alunos vinculados ao Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia. Desde 2013 que cinco turmas vêm cursando a licenciatura em regime modular. Eles são, em sua maioria, professores do primeiro ciclo do Ensino Fundamental (lecionam para crianças de sete a doze anos de idade, em média, do 1º ao 5º ano) das redes municipais no interior do estado. A modalidade de acesso ao PARFOR é via plataforma eletrônica no sitio da CAPES não existindo nenhum processo seletivo como forma de acesso. O único requisito é que o candidato ao programa seja professor efetivo dos quadros municipais ou estaduais.

A maneira peculiar de acessar uma universidade federal pela via PARFOR oportunizou na Amazônia alguns milhares de professores e professoras que não viam como realizar o “sonho” de obter o diploma superior.

O PARFOR tem um arranjo que se por um lado é inovador e digno de aplauso (um modelo interinstitucional com repartição de competências), por outro, deixou em aberto questões básicas porque não regulamentou direitos básicos desses professores-alunos. Há sempre a cada início e final de módulo conflitos que poderiam ser resumidos entre as obrigações dos professores do Ensino Fundamental das prefeituras municipais versus os direitos dos alunos universitários de exigir o tratamento isonômico em relação aos demais universitários do ensino regular que acessaram o ensino superior via Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Os formuladores desta política pública parecem admitir que a liberalidade do governo federal em ofertar “gratuitamente” a capacitação, em nível de graduação plena, aos professores que ainda


  1. Informações por email.

  2. A forma de acesso ao PARFOR é via eletrônica pela Plataforma Paulo Freire não correndo processo seletivo nos moldes convencionais. Basta o professor interessado se inscrever e aguardar a oferta de vaga pela instituição.

  1. Informação referente ao ano de 2016. Cursista é o termo utilizado nos documentos oficiais do governo federal para se referir aos discentes.


    não a detinham, tornaria o PARFOR um programa aceito nem nenhuma crítica, como se fosse realmente um “presente”.

    Contudo, vários conflitos surgiram logo no início da execução do programa na UNIFAP e a isonomia de tratamento passou a ser, sem muita demora, um dos temas mais recorrentes entre os professores- alunos do PARFOR/UNIFAP. Uma das questões mais arguidas por eles junto aos gestores da UNIFAP foi: por que os alunos do regular tem direito aos serviços do restaurante universitário (RU) e os do PARFOR não?

    Esta questão específica, a título de exemplo, foi capaz de transformar a demanda (que era coletiva) numa pauta objeto de reivindicação com reuniões recorrentes entre representantes de turmas e pró- reitores, assembleias de alunos e até denúncias ao Ministério da Educação (MEC). A pauta foi capaz de organizar os alunos do PARFOR em uma “categoria” de estudantes universitários e, ao final, o movimento venceu essa primeira batalha. Os professores-alunos do PARFOR passaram a ser atendidos pelo RU nos mesmos termos dos alunos do ensino regular.


    METODOLOGIA

    Esta é uma pesquisa de caráter qualitativo. Os sujeitos investigados, aqui denominados professores-alunos do PARFOR/UNIFAP estão em fase de conclusão do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia, no qual o autor deste trabalho é docente. Eles estão assim, completando o oitavo modulo seguido se transferindo de suas cidades do interior para a capital, a fim de conseguir o almejado diploma de ensino superior.

    A UNIFAP promove desde 2013 a formação para 5 turmas de Pedagogia. Cada turma tem, em média, 25 professores-alunos. São turmas formadas majoritariamente por mulheres. A maioria leciona no interior do estado do AP, em pequenos municípios denominados “cidades ribeirinhas11”, alguns inclusive na zona rural. Eles são servidores públicos concursados para os quadros das prefeituras municipais. Para este estudo o recorte amostral se destinou aos professores-alunos/alunas que não trabalham na capital Macapá. Das 5 turmas selecionou-se 15 alunos/as sendo 3 de cada turma. Foi entregue a cada um deles um roteiro com 5 “eixos” para elaboração de um memorial narrativo autobiográfico onde eles pudessem narrar suas trajetórias de vida e escolares.

    Narrativas pode ser um instrumento importante para pesquisas que pretendem compreender processos socializadores. Vários são os métodos em que se pode colher histórias: entrevistas, diários, autobiografias, gravação de narrativas orais, narrativas escritas, e notas de campo. No caso deste trabalho a opção foi por narrativas escritas em forma de memoriais autobiográficos. Como o autor é professor na UNIFAP e leciona no PARFOR há mais de 4 anos, tem a oportunidade de contato, pelo trabalho de rotina, com os sujeitos investigados. Assim, além da técnica da narrativa escrita, foram utilizados, portanto, outras como a observação, a escuta e as conversas informais.


    A TEORIA DO HABITUS NO CONTEXTO DA AMAZONIA: a formação de capital cultural

    Para Bourdieu12 habitus é “aquilo que se adquiriu, mas que se encarnou no corpo de forma durável [mas não imutável] sob a forma de disposições permanentes”. O habitus seria ainda algo que se inscreve quase geneticamente, assumindo a aparência de algo inato ou mesmo “natural” ao indivíduo.


  2. Pequenas cidades amazônicas, localizadas no meio da floresta e às margens dos rios.

  3. BOURDIEU, P (1983). Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.


    [...] os agentes sociais são dotados de habitus, inscritos nos corpos pelas experiências passadas: tais sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação permitem tanto operar atos de conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reconhecimento de estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, como também engendrar, sem posição explicita de finalidades nem calculo racional de meios, estratégias adaptadas e incessantemente renovadas, situadas porém nos limites das constrições estruturais de que são o produto e que as definem13.


    Bourdieu14 destaca a dimensão do passado para explicar a teoria do habitus. Segundo ele, a ação de estruturas sociais tais como a família, desde a primeira infância, leva a criança, por meio de um aprendizado quase natural, à incorporação dos habitus primários. Assim, no convívio familiar, as crianças vão construindo seus gostos mais íntimos, seus trejeitos, suas aspirações, sua autoimagem, suas autoestimas, enfim, vão incorporando os habitus primários que estarão no princípio das experiências escolares. Estas, se incorporadas, mesmo que parcialmente, constituirão os habitus secundários, os quais estarão no princípio da percepção e da apreciação das demais experiências do indivíduo, incluindo a capacitação e o desempenho profissionais.

    O habitus para Bourdieu15, faz com que pessoas ao compartilharem o mesmo ambiente social tenham estilos de vida parecidos; é aprendido com o corpo, é algo que se tem e que se vê nos demais; é a forma que uma pessoa tem de andar, comer, falar, vestir-se etc.

    A noção conceitual capital cultural é um desdobramento da teoria do habitus e tem sido discutida e utilizada em diferentes vias de investigação empírica. Em “O Poder Simbólico”16 o autor aborda a categoria capital cultural e destaca que o recurso existe na forma de três estados: 1) o capital cultural incorporado que se refere à interiorização de costumes, condutas e códigos diversos que se transformam em posse e dão luzes ao habitus de uma pessoa ou à de sua classe social; 2) o capital cultural objetivado. Para apropriar-se de um bem cultural adquire-se o habitus cultural de classe; 3) o capital cultural institucionalizado conferido por meio de diplomas.

    A acumulação de capital cultural pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo e deve investido pessoalmente pelo indivíduo (como se fosse um bronzeamento). É uma espécie de capital pessoal que não é transmitido instantaneamente por doação ou transmissão hereditária, por compra ou troca e também não pode ser acumulado além das capacidades que o indivíduo têm17.

    No estado objetivado o capital cultural mantém estreita relação com o estado incorporado. Ainda lembra Bourdieu que


    [...] ele só existe e subsiste como capital ativo e atuante, de forma material e simbólica, na condição de ser apropriado pelos agentes e utilizado como arma e objeto das lutas que se travam nos campos da produção cultural [...] e, para além desses, no campo das classes sociais, onde os agentes obtêm benefícios proporcionais ao domínio que possuem desse capital objetivado, portanto, de seu capital incorporado18.


    Por sua vez, o diploma, sem dúvidas, é o exemplo concreto que o autor confere ao status de pessoas de muito destaque. É que o diploma seria uma “certidão de competência cultural”, o diploma produz


  4. BOURDIEU, P (2001). Meditações Pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. p. 169.

  5. BOURDIEU, P (1994). “O campo científico”, In: ORTIZ, R (Org.,) (994). Pierre Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática.

  6. BOURDIEU, P (1996). Razões práticas: sobre a teoria da razão. 9 ed. Campinas, SP: Papirus.

  7. BOURDIEU, P (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

  8. BOURDIEU, P (1998). Op. cit.

18 Ibíd., p. 86.


descontinuidades duráveis e brutais. É o reconhecimento institucional e a possibilidade de se comparar os indivíduos entre si além de permitir converter capital cultural institucionalizado em capital econômico.

A teoria do habitus, como qualquer outra, se realiza em dada estrutura social e em determinadas condições materiais de existência. Na Amazônia, portanto, a formulação do habitus, a formação do capital cultural, assim como a constituição das disposições dos indivíduos terá um rebatimento e formas específicas e singulares de manifestação. Por exemplo, nas regiões periféricas do Brasil como Norte e Nordeste sempre se registrou índices mais baixos de capital humano (este, talvez, o mais importante recurso para a formação de um capital cultural tido como legítimo na sociedade atual). Outro exemplo: a ligação propriamente dita da Amazônia com o Brasil se deu a partir da década de 1960 com a construção da rodovia Belém-Brasília. A formação econômica e social da Amazônia brasileira guarda traços históricos muito particulares.

Até hoje a região é vista pelos “outros” (e até por olhares de muitos nativos), como um lugar atrasado pois a modernidade nos moldes capitalistas ainda não se estabeleceu na Amazônia como um todo, nem completamente.

Desde sua formação histórica, a presença dos povos indígenas sempre foi uma forte marca que continua até os dias atuais apesar do processo de genocídio que sofreram essas populações.

Disputas pelo território amazônico ocorreram desde quando da colonização brasileira, mas ao final, os portugueses saíram vitoriosos e se mantiveram hegemônicos, especialmente a partir da década de 1780 com a institucionalização do denominado “Período Pombalino”.

Assim, no início especialmente, a região estava habitada por nativos indígenas e portugueses. No decorrer do processo de ocupação do território, negros foram trazidos da África para o desenvolvimento da agricultura e de outros serviços, e nos áureos períodos da borracha (1880/1900 e depois 1940- 1945) levas de brasileiros nordestinos chegaram, principalmente nas cidades de Manaus e Belém para trabalhar nos seringais fornecedores da balata (resina retirada da árvore Seringueira e transformada depois em borracha).

A matriz étnica acima (que constitui a herança cultural da região Norte do Brasil), a presença de indígenas nativos, portugueses, negros e nordestinos será mais tarde o resultado do indivíduo amazônico, que de um modo geral pode ser denominado como um “camponês caboclo”: um tipo que passou a ter forte relação com a natureza representada simbolicamente pela densa floresta tropical, e que se adaptou a um modo de vida cuja relação com o mercado não é determinante (até certo ponto, o caboclo amazônico não depende da modernidade capitalista, ou pelo menos, não dependia até bem pouco tempo atrás).

Para Lira & Chaves


A Amazônia é ocupada por uma diversidade de grupos étnicos e por populações tradicionais, historicamente constituídas, a partir dos vários processos de colonização e miscigenação por que passou a região. Pode-se afirmar que o homem amazônico é resultado dos intercâmbios históricos entre diferentes povos e etnias. Tal intercâmbio possibilitou uma herança que se revela nas mais diferentes manifestações socioculturais expressas pelo homem amazônico na vida cotidiana, quais sejam: as relações de trabalho, a educação, a religião, as lendas, os hábitos alimentares e familiares19.


19 LIRA, T de M & CHAVES, M do PSR (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política”,

Revista INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, vol. 17, n°. 1, jan./mar, p. 72.


Muitas cidades pequenas ou vilarejos rurais, ainda hoje, são fortemente marcados pela cultura campesina cabocla componente principal da formação cultural da Amazônia se destacando de modo muito surpreendente um extrato social denominado pela literatura de “caboclo ribeirinho”.


As comunidades ribeirinhas apresentam, ainda, um modo particular de vida em vários aspectos, tais como: uso do território, uso e manejo coletivo dos recursos locais, orientados por seus saberes e em bases comunicativas e cooperativas; no estabelecimento das relações sociais de trabalho, bem como, nas relações de compadrio e parentesco. No contexto amazônico, esses aspectos assumem singularidades regionais próprias20.


São nessas circunstâncias contextuais e culturais que a teoria do habitus, a formação do capital cultural e os tipos de disposições individuais constituídas se elaboram e se amalgamam entre si na Amazônia brasileira.


DISPOSIÇÕES E RESISTÊNCIA NO CONTEXTO DA AMAZÔNIA

O conceito, e a própria teoria do habitus, foram passados em revista Lahire21 que aprofundou e deu melhor compreensão à noção trazendo também uma nova discussão para a categoria disposições, um dos importantes elementos da teoria de Bourdieu.


O interesse que experimentei, desde os primeiros anos de meu percurso científico, pela teoria do habitus me conduziu progressivamente a forjar a convicção segundo a qual se faz necessário examinar o mundo social à escala dos indivíduos. A concepção de que existe um social (ou uma história) em estado incorporado, sob a forma de disposições a agir, a crer, a sentir, etc., me parece fundamental quando nos propomos compreender as práticas ou os comportamentos. Este interesse se acompanhou entretanto de um questionamento, teoricamente argumentado e empiricamente fundamentado, de um certo número de aspectos do conceito de habitus. O ponto principal que me levou destacadamente a sistematizar a mudança de escala e de ponto de vista do conhecimento concerne à questão da “transferibilidade das disposições”, mais postulada do que verificada empiricamente pela teoria do habitus enquanto “sistema de disposições duráveis e transferíveis.”22 (Grifos nossos)


Para Lahire23 “a noção de disposição [...] ela proíbe pensar na possibilidade de deduzir uma disposição a partir do registro ou da observação de apenas um acontecimento. ” Segundo ele, as disposições podem ser ativadas e desativadas. Esse movimento de ativar e desativar disposições pode ser concebido como o “produto da interação entre (relações de) forças internas e externas.

Disposições, assim, são inclinações, propensões a agir, mas pode ser para além disso. O autor, assim, vai demonstrando que a categoria disposições é composta de graus diferenciados. Por isso Lahire24 continua revelando que as disposições se distinguem segundo o seu grau de fixação e de força. Assim, existem disposições fortes e disposições mais fracas. A força e a fraqueza relativas das disposições dependem, em parte, da recorrência da sua atualização. Por exemplo, os hábitos duráveis


20 Ibíd., p. 73.

21 LAHIRE, B (2013). Op. cit. p. 17.

  1. Ibídem.

  2. LAHIRE, B (2002). Op. cit.

  3. LAHIRE, B (2005). “Patrimónios individuais de disposições. Para uma sociologia à escala individual”. Sociologia, problemas e práticas, nº 49, p. 21.


    não são incorporados em apenas algumas horas. Por outro lado, algumas disposições constituídas podem enfraquecer ou se apagar por falta de atualização, e as vezes pelo fato de serem reprimidas.

    As disposições são em parte constituídas pelas heranças culturais, portanto, são parte do jogo das composições das diversas formas de disposições. Estas, com suas diversificações em grau de força e fixação25.

    A herança cultural é um legado que passa de uma geração a outra, e que pode adotar diversas formas. Pode-se falar de heranças econômicas, políticas, além de culturais, e etc. Em geral, herdar cultura supõe a incorporação uma série de características determinadas que a geração à qual se chega, pode ressignificá-la, modificá-la, maximizá-la ou até desativa-la, com relação às características legadas26.

    De maneira específica, Tavares27 define a herança cultural como todos os costumes, tradições, expressões artísticas e modos de vida que se transportam de geração em geração em uma região geográfica determinada. Com efeito, a teoria do habitus vai interpretar os processos socializadores dando importante atenção às variações contextuais.

    Buscar aspectos da teoria formulada por Bourdieu na Amazônia faz remeter às lições de Benchimol28. Para este autor, o conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazônia colonial foi um processo predominantemente indígena. Os ameríndios que iniciaram essa ocupação e os seus descendentes caboclos desenvolveram as suas matrizes e seus valores, baseado no íntimo contato com o ambiente físico e biológico amazônico.

    O ciclo de vida dos nativos da Amazônia se adaptava às peculiaridades regionais e naturais, retirando da natureza os recursos materiais para subsistência e as fontes de inspiração do seu imaginário de mitos, lendas e crenças, traços que formaram a cultura do caboclo ribeirinho.

    A dinâmica produtiva nas comunidades ribeirinhas guia-se, portanto, pela relação homem- natureza. Na Amazônia brasileira, os agentes sociais utilizam seus saberes tradicionais, acumulados historicamente, instituindo múltiplas relações com o meio ambiente, com os recursos locais, como por exemplo, os ciclos naturais, a reprodução e migração da fauna, a influência da lua nas atividades de corte da madeira, da pesca, do roçado, os sistemas de manejo dos recursos naturais, utilizando tais informações no seu dia a dia e efetuando, assim, seus processos de sobrevivência e reprodução.

    Para Benchimol29 as matrizes culturais índio-caboclas foram cedendo espaço para o novo grupo de “cearenses” (e depois aos “gaúchos”), criando uma diversidade de valores significativa. Os contatos entre esses grupos nem sempre foram (ou são!) pacíficos, pois a história registra lutas e conflitos pela posse e domínio de vastas áreas de floresta densa e pela terra, disputadas por seringalistas, extratores, fazendeiros e agricultores.

    Araújo30, considera que a contribuição indígena-cabocla para a ocupação e desenvolvimento da Amazônia foi importante e, sem ela, a tarefa de descoberta e exploração teria sido impossível. Submissos, subordinados, adaptados, indignados ou integrados, eles ensinaram aos novos senhores e imigrantes os segredos do rio, da terra e da floresta.


  4. LAHIRE, B (2008). Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. Artmed. Porto Alegre.

  5. REZENDE, P (2009). Antropologia cultural. Curitiba: IESDE.

  6. TAVARES, RMM (2009). Mudança de rumo, já: herança cultural, preservação e desenvolvimento. Campinas, SP: Pontes.

  1. BENCHIMOL, S (2009). Amazônia: formação social e Cultural. 3 ed. Manaus: Valer.

  2. Ibídem.

  1. ARAÚJO De, AV (2003). Introdução à sociologia da Amazônia. 2 ed. Manaus. Valer.


    Benchimol31, ainda destaca a biodiversidade da floresta e dos rios, recursos naturais, como fontes de onde índios e seus descendentes caboclos retiravam tudo o que precisavam para as suas casas, montarias (canoas regionais), arcos, flechas, redes, vernizes, tintas, venenos, remédios, alimentos, frutos, amêndoas, drogas alucinógenas, bebidas para as suas festas e danças, remédios e adornos diversos. Desse modo, a noção “caboclo ribeirinho” abre espaço para se pensar a questão do caboclo da Amazônia, sobretudo os que vivem em pequenas cidades ou em lugarejos rurais, como uma questão de identidade ou uma cultura de “resistência”, posto que essas populações sobrevivem a processos exógenos preconceituosos no contato que necessitam ter cada vez mais com os valores da modernidade capitalista.


    A FORMAÇÃO DO CAPITAL CULTURAL E PROCESSOS DE RESISTÊNCIA DOS PROFESSORES- ALUNOS DO PARFOR/UNIFAP

    Os resultados da presente pesquisa, os registros autobiográficos nos memoriais, confirmam dados de Ribeiro32 sobre características sócio econômicas e culturais de professores que são alunos do PARFOR na UNIFAP.

    Os investigados são filhos de pais com baixíssimo capital cultural se se considerar o grau de escolaridade dos ascendentes; oriundos de famílias de baixa renda financeira com ocupações profissionais muito populares e predominância profissional em áreas rurais, além de famílias numerosas. Estes professores e professoras, sujeitos aqui investigados, que escreveram suas narrativas/memoriais, têm mais de trinta anos de idade e mais de sete anos de experiência no magistério das séries iniciais, em média.

    Os excertos abaixo (sujeitos identificados por letras) vão revelando e corroborando as origens sociais dos professores-alunos, que trabalham na parte setentrional da Amazônia brasileira:


    “Nasci na Vila de Americano... conhecida pela produção de farinha de tapioca...Meu pai estudou até a 4ª série do primário, minha mãe formou-se em magistério e exerceu por longos anos a profissão de professora... pais de oito filhos... Meus pais trabalharam muito na roça com meus dois irmãos mais velhos, quando minha mãe terminou o magistério, conseguiu um emprego de professora e viemos morar na Vila” (Professora-aluna D).


    “Venho de uma família de nove irmãos somente de meus pais, mas tenho 4 irmãos só da minha mãe e 4 só do meu pai, somos no todo 17...Meus pais tem até a primeira série do MOBRAL”. (Professora-aluna O).


    “No início de suas vidas, meus pais trabalhavam como agricultores para sustentar a família, pois a escolaridade dos dois era mínima, meu pai tinha apenas a segunda série e minha mãe a quinta série do ensino fundamental” (Professora-aluna J).


    “Mamãe contava que enquanto vovó cuidava dos filhos mais novos ou ia para a roça, ela, sua irmã Ilda e o vovô iam pescar para alimentar a família e quando chovia elas tiravam a roupa para não molhar porque só tinha aquela roupa, e escondiam na proa da canoa” (Professora-aluna C).


  2. BENCHIMOL, S (2009). Op. cit.

  3. RIBEIRO, AC (2011). PARFOR na Amazônia Setentrional: capital social e trajetórias escolares. 35ª Reunião Nacional da ANPED, Natal-RN.


    As narrativas vão desvelando sujeitos de origens sociais das camadas muito simples e revelam também a matriz rural confirmando a origem no “campesinato caboclo33”. Filhos ou netos de agricultores, pescadores, caçadores, extrativistas, coletores de frutos ou sementes da floresta, que nasceram em comunidades rurais ribeirinhas, algumas isoladas dos centros urbanos e que mantinham com o mercado uma relação parcial e precária porque a floresta, a terra, o rio e os lagos, fizeram o abastecimento de boa parte, senão de toda a parte das necessidades básicas para o sustento da família. Os professores-alunos do PARFOR/UNIFAP que lecionam no interior do estado do Amapá são realmente filhos e descendentes do extrato social amazônico “caboclo ribeirinho”. Essas são suas matrizes culturais. O fato de terem se tornado professores e funcionários do Estado nas redes municipais e estaduais revela uma negação do destino natural que lhes estava reservado.

    Apesar da difícil origem social, mas devido a construção de disposições variadas, quanto às trajetórias escolares os investigados dão pistas das dificuldades que passaram nos estudos, mas também narraram o valor que seus pais deram à Educação quando tiveram a “visão” de apoiá-los a estudar. Como os professores-alunos do PARFOR tem trajetórias de vida exitosas uma vez que se tornaram professores concursados do serviço público negando assim o próprio destino (quando quebraram a sequência natural de ocupação profissional da árvore genealógica) uma das hipóteses é que eles, em suas disposições para agir, ainda que tenham desativado por um tempo o sonho do ensino superior, quando surgiram as condições mínimas de realizar esse “sonho”, eles não titubearam.


    “Meus pais sempre nos apoiaram em nossos estudos, papai nem deixava a gente trabalhar para não atrapalhar os nossos estudos. Se não fosse por eles, pela compreensão deles e pela paciência, não seríamos o que somos hoje e por isso eles se orgulham da gente e do que nos tornamos, principalmente por termos um bom caráter” (Professora-aluna F).


    “Fui criada pela minha mãe que até hoje trabalha de merendeira na mesma escola desde que comecei a estudar na 1ª série do ensino fundamental...como a escola ficava perto de casa eu ia andando junto com a minha mãe...durante toda a minha trajetória foram muitas as pessoas importantes nesse momento em minha vida, assim como minha mãe incentivou meus estudos, hoje incentivo meus filhos também”. (Professora-aluna K).


    O que chamamos neste trabalho de processos de resistências é uma capacidade que os sujeitos pesquisados têm para perseguir seus desejos, metas, sonhos, crenças. Os excertos abaixo confirmam a influência de aspectos dos contextos culturais, mas parecem confirmar a existência de “forças” advindas das diversas matizes sociais socializadas ao longo de suas trajetórias de vida e escolares e que fazem o indivíduo compor e recompor disposições para agir.


    “Durante toda a minha trajetória de vida não foi nada fácil...Hoje estou com quarenta anos e de toda a minha família entre irmãos e primos, eu sou a única que estou cursando o nível superior...Não fiquei sem estudar todos esses anos porque quis, mas sim porque não tive oportunidades e muito menos condições financeiras...agora estou tendo e vou concluir o meu curso de Pedagogia... não está sendo fácil, tive um problema sério de saúde... e nem pensei em desistir e hoje estou aqui firme e forte” (Professora-aluna C).


  4. Sistema que emergiu a partir da metade do século XVIII que se tornaria a base produtiva fundamental da colônia brasileira na região Norte. A partir da segunda metade do século XIX permite a montagem da estrutura dos seringais na Amazônia. Quando este desmoronou já no início do século XX permitiu o crescimento de um forte campesinato extrativista no Acre e no estado do Pará.


    “Estudo porque sempre tive vontade de ser ou ter uma profissão que eu pudesse ter orgulho...Mas as condições ainda eram poucas...Saímos de nossas casas a despesa é multiplicada, o cansaço, a falta de dinheiro, as humilhações que passamos, filhos ou parentes enfermos, etc, mas não deixamos de acreditar que somos fortes...A turma é nossa segunda família, encontramos apoio” (Professora-aluna M).


    “Sempre quis voltar a estudar, ter meu ensino superior mas não tinha oportunidade. O PARFOR foi uma oportunidade de realizar meu sonho, a minha principal dificuldade para estudar é a situação financeira, pois tenho que trazer meu filho menor e alugar casa para ficar aqui nesse período” (Professora-aluna K).


    “Ao entrar na prefeitura veio a oportunidade do PARFOR, não perdi tempo e abracei com muita garra, comecei em 2013 os desafios foram muito, inclusive quase todos os módulos vendia lanches para me manter na universidade” (Professora-aluna V).


    Todos os excertos acima, quando analisados no seu conjunto têm grandes chances de corroborar, a nosso ver, as inferências feitas por Lahire34.

    Cada indivíduo porta em si competências e disposições a pensar, sentir e agir, que são os produtos de suas experiências socializadoras múltiplas. Tudo aquilo que é institucional e cientificamente decomposto (a escola, a família, a empresa, o clube esportivo, o partido político ou o sindicato, a Igreja, o grupo de pares, etc.) se recompõe (no sentido de um entrecruzamento) de uma certa maneira em cada indivíduo35.

    Ainda que em condições contextuais completamente adversas é razoável admitir que as condições de transferibilidade de hábitos não ocorrem de maneira homogênea e coerente, de forma linear. Os sujeitos pesquisados foram ativando e desativando disposições, ou mesmo reativando antigas disposições que um dia foram fortes, mas que foram temporariamente “deixadas de lado”, como é o caso de realizar o sonho do ensino superior.

    As trajetórias socializadoras, portanto, estão “contaminadas” por um vai e vem de decisões, mais ou menos fortes, mais ou menos longas ou curtas, temporárias ou definitivas, que reúnem o que Lahire chama de “indivíduo social”.


    CONSIDERAÇÕES PRIMEIRAS

    As evidências encontradas nas narrativas autobiográficas confirmam que os professores-alunos atendidos pelo PARFOR/PEDAGOGIA/UNIFAP são descendentes de nativos da região Norte e de um extrato econômico social muito peculiar denominado na literatura regional de “camponês caboclo”, especificamente do caboclo ribeirinho. São filhos de agricultores, pescadores, extrativistas, trabalhadores braçais ou autônomos, de mulheres “dona de casa”, pais com baixo capital escolar e cultural.

    Os processos socializadores dos sujeitos pesquisados são plurais. Apesar de terem nascido em uma região periférica brasileira e no interior da Amazônia, não se pode afirmar que haveria homogeneidade e unicidade nas transferências dos conjuntos de hábitos e costumes pelos seus ancestrais. Esses alunos/alunas do PARFOR foram influenciados por uma sorte de diversas matizes que os fizeram estar dispostos a “negar” a matriz dos próprios ascendentes, inclusive com o apoio e compreensão destes, na maioria das vezes.

    A capacidade de romper com os constrangimentos sociais dos contextos culturais locais os torna dispostos a crer e a sentir possibilidades outras que antes a família não experimentara, como por exemplo ser o primeiro a chegar ao ensino superior de uma universidade federal.


  5. LAHIRE, B (2013). Op. cit.

  6. Ibídem.


Suas formas de resistência ficaram bem configuradas não só pela vontade de agir, pela disposição de agir, mas também pela capacidade de reativar disposições que antes foram fortes, adormeceram, mas que voltou com muita força. Mas porque também os sujeitos provaram capacidade de organização para reivindicar tratamento isonômico diante de uma política pública federal que não deixou claro quem assumiria o custo/aluno para cada um deles. Foi necessário fazer movimento estudantil e conquistar direitos formais, inclusive.


Año 22, n° 79


Esta revista fue editada en formato digital y publicada en octubre de 2017, por el Fondo Editorial Serbiluz, Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela


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