ESTUDIOS

UTOPÍA Y PRAXIS LATINOAMERICANA. AÑO: 22, n°. 79 (OCTUBRE-DICIEMBRE), 2017, PP. 21-39 REVISTA INTERNACIONAL DE FILOSOFÍA Y TEORÍA SOCIAL

CESA-FCES-UNIVERSIDAD DEL ZULIA. MARACAIBO-VENEZUELA.


Devir Pássaro: ecosofia em conexões


Devir-bird: ecosophy in connections Devir-pájaro: ecosofía en conexiones Marta CATUNDA

Universidade de Sorocaba (UNISO), S-P, Brasil.


Rodrigo REIS RODRIGUES

IA- Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil.


RESUMO


Este texto apresenta um panorama de investigação e atividades realizadas ao longo da última década, em conexão aos movimentos sociais ligados à ecologia, permacultura, arte, dança e como se desdobram em obras artísticas, cartografias, entre outras contribuições à educação ambiental. As práticas de sensibilização do corpo, práticas artísticas, ecológicas e educativas promovidas em alianças do Grupo de Estudos Perspectiva Ecologista de Educação da Universidade de Sorocaba/UNISO, com a rede de Estudos Ecosofia

– Ética para o Século XXI

Palabras chave: Educação ambiental; movimentos sociais; práticas de sensibilização.


ABSTRACT


This article presents an overview of research and activities undertaken in the last decade, in connection with social movements linked to ecology, permaculture, art, dance and how to unfold in artistic works, mapping among other contributions to education environmental.

Through a partnership of the Group of Studies Ecological Perspective of Education of the University of Sorocaba / UNISO with the Network of Studies Ecosofía - Ética for the XXI Century see carrying out sensitization practices of the body, artistic, ecological and educational.

Keywords: Education environmental; social movements; sensitization practices.


RESUMEN


En este texto se presenta un panorama de investigación y actividades realizadas a lo largo de la última década, en conexión con movimientos sociales ligados a la ecología, permacultura, arte, danza y cómo se desdoblan en obras artísticas, cartografías entre otras contribuciones a la educación ambiental. Las prácticas de sensibilización del cuerpo, prácticas artísticas, ecológicas y educativas promovidas en alianza con el Grupo de Estudios Perspectiva Ecologista de Educación de la Universidad de Sorocaba / UNISO, y la Red de Estudios Ecosofía - Ética para el Siglo XXI.

Palabras Clave: Educación ambiental; movimientos sociales; prácticas de sensibilización.


Recibido: 16-06-2017 ● Aceptado: 12-08-2017


INTRODUÇÃO (pouso)

Para iniciar este texto é importante situar as motivações das vivências, conversas, movimentos de sensibilização do corpo, promovidas pelo Grupo de Estudos Perspectiva Ecologista da Educação da Universidade de Sorocaba/UNISO, coordenado por Marcos Reigota, em conexão com a Rede de Estudos Ecosofia – Ética para o século XXI, coordenado por Rodrigo Reis e Felipe Adam Kurschat.

O primeiro nasceu em 2010 e integra a Linha de Pesquisa em Cotidiano Escolar do Programa de Pós Graduação da UNISO, em Sorocaba que atende diretamente alunos da Pós Graduação em Educação. Importante aqui destacar que muitos alunos docentes da pós-graduação que compõem o Grupo de Estudo integram em suas pesquisas questões imanentes da urbe que se espraiam nos diversos contextos da educação: em escolas, creches, associações, ONG’s que se deparam com a precariedade dos serviços públicos municipais e/ou estaduais, de saúde física e mental, das necessidade especiais, das fitossanitária, da segurança, da falta de condições ambientais, tecnológicas adequadas, entre outros controles acirrados advindos do próprio sistema de administração de educação e se estende por toda da rede escolar de ensino.

Estas questões que invadem o cotidiano nas/das escolas onde lecionam, nas/das cidades e bairros onde vivem dialogam com seus temas de pesquisa de mestrado e doutorado, estudos e ações, práticas sociais, comunitárias pedagógicas e/ou artísticas em educação ambiental em oficinas, cursos, mini-cursos, encontros, mesas redondas, palestras, apresentações culturais, artísticas, entre outras atividades. É necessário perceber estas dobras e desdobras, aquilo que permanece invisível a potência e o alcance de um Grupo de Estudos dentro de um Programa de Pós Graduação em educação tudo, o que o envolve, lida, contribui, amplia, dimensiona/redimensiona para além da formação docente em si e que está em conexão, portanto, com outras redes sociais dentro e fora da Internet.

O segundo grupo foi motivado por iniciativa de dois jovens músicos e terapeutas na busca de uma compreensão da esquizoanálise e das articulações possíveis com a arte, arriscando um olhar entre a clínica e as demais artes, poesia, literatura, dança e em especial a música, enfim as manifestações sensíveis da contemporaneidade em atividades que denominam Encontros Ecosóficos. Há quartorze anos vem então reunindo para estes encontros, estudantes e profissionais de diversas áreas e pesquisadores de várias IES (UNESP-SP-Assis, USP, PUC-SP, UFSC, UnB, Faculdade Oswaldo Cruz, Instituto Sedes Sapientiae, Clínica Kairós, Laboratório do Processo Formativo, Taanteatro Cia, Cia Sansacroma). A dobra/desdobra deste grupo tem como principal potência a heterogeneidade dos participantes conectados com as mesmas questões da eco e da urbe acima citadas, dentro e fora da rede de ensino e saúde pública, da clínica “psi” em consultórios, conexões diversas trazidas por seus participantes com clínicas, hospitais, universidades, grupos de dança, de cultura afro, indígena que ressoam em suas atividades profissionais de pesquisa. A fidelização dos participantes é dada pelo estar e produzir juntos.

Ambos os grupos em linhas diferentes vem agregando uma vitalidade, um desejo de mergulho de exercitar na pratica a ecosofia (2001)1 de Guattari e nos Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997)2 (escrito em 1980). Há sete anos o encontro dos grupos tem servido de um laboratório de ações de cidadania em educação ambiental, e de lá para cá foi iniciada uma intensa troca em oficinas e outras atividades educativas e artísticas. A alegria em desdobramento é compartilhada em sábados ou em, finais de semana, em locais especiais, com alimentação sustentável, preferencialmente vegetariana.


  1. GUATTARI, F (2001). As três ecologias. 11. ed. Papirus. Campinas.

  2. DELEUZE, G & GUATTARI, F(1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol, Editora 34. São Paulo.


    Devir pássaro trata-se então em um primeiro instante de conexão entre grupos, nos efervescentes caminhos interiores do estado de São Paulo. Não poderia deixar de ser mais oportuno este texto ter nascido de um encontro dos referidos grupos com diversos outros do país, uma dobra panorâmica rizomática da educação que se pôde perscrutar/dimensionar/redimensionar no “VI Seminário Conexões: Deleuze máquinas e devires, e...”, ocorrido em outubro de 20153 na cidade de Campinas, São Paulo. Esta ocasião anual gera uma troca intensa sobre pesquisa em educação, ecoa do interior de São Paulo, em conexão com diversas linhas de pesquisa e estudos, mas, também abre para expressões sensíveis que nos permitem resituar4 conversar e expressar as experiências em educação com desdobramentos criativos, inventivos entre outros em desenvolviment. Mais recentemente, parte deste texto foi tema de apresentação no I Congresso Internacional de Educação: (In)quietudes e fronteiras em conhecimentos e práticas educacionais, ocorrido em outubro de 2016, na UNISO em Sorocaba.

    Devir pássaro pousa aqui como um holograma continental, tropical pairando conexão, alimentando, laborando, existindo, reexistindo, divisando, multiplicando. Um condor, que faz renascer a vida da morte.

    Essas conexões e redes configuram outros espaços de interlocução, de possibilidade criativa ampliando, replicando possibilidades acadêmicas. Neste espaço percebem-se as ressonâncias dos movimentos sócio ambientais da educação com “n” grupos das cidades de Sorocaba, São Paulo, Campinas, o país, outros continentes, o planeta. Esta confluência nômade efervescente forma uma atmosfera nas/das conexões produtoras, que animizam/amenizam um movimento cotidiano entres cidades que reverberam nas/das questões imanentes da urbe. Para Canevacci5, que produziu uma obra sobre a cidade de São Paulo, uma cidade comunica seu estilo particular de vida, o seu ethos, forma um conjunto de valores, crenças, comportamentos explícitos e implícitos.


    A cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas as outras, isolam- se ou se contrastam, e também designa uma certa escolha metodológica de “dar voz a muitas vozes”6.


    As manifestações de cidadania entre outras se articulam com acontecimentos contundentes na vida escolar onde/quando a deterioração da vida, está presente na socialidade em/na conexão com as questões de saúde (drogas, saúde preventiva, epidemias tais como a dengue, saúde física e mental) das manifestações culturais pró-cidadania contemporânea (de gênero, sexo, cor, de etnia). São ainda ecos que reverberam nas questões de segurança pública, alimentar, da precariedade das gestões governamentais dos recursos essenciais (a água, dos rejeitos e/ou resíduos sólidos, tóxicos, poluição, uso abusivo de agrotóxicos e/ou transgênicos na agricultura, queimadas, etc.) em conjunção com fenômenos climáticos das enchentes e períodos de seca. Em crimes ambientais que anulam da noite para o dia, a vida de milhares de pessoas e animais, rios. A perversa ocupação especulativa de espaços dentro e fora das cidades gerando permanentes movimentos de sem teto, sem terra, sem praça,


  3. Ocorrido em setembro na Faculdade de Educação, na Universidade de Campinas, UNICAMP, SP organizado pelo Laboratório de

    Estudos Audio Visuais (Grupo de Estudos Olho) 2015 e está em sua sexta edição.

  4. FREIRE, P (1987). A pedagogia do oprimido. Paz e Terra. Rio de Janeiro.

  5. CANEVACCI, M (1993). Cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. Estúdio Nobre. São Paulo.

  6. Ibidem, p. 17.


    sem espaço cultural 7, atingidos por barragens8, dos remanejados de escolas9, dos imigrantes/migrantes chegantes de todos os dias. Enfim toda sorte de questões que palpitam desta imanência para dentro/ fora do cotidiano escolar.

    Viver no interior é viver neste entrecruzamento, neste lugar fímbria mutante, onde uma espécie de espargimento de tudo que as metrópoles maiores fazem ecoar, ressoar, reverberar, se espraia. Há muitos rios de lágrimas em torno daqueles que estão secando, rios invisíveis, como assim o são aqueles voadores10, rios de lama, desabrigo, desalento formando bacias hidrográficas peninsulares abraçando istmos, segurando desesperadamente as raízes das florestas e há nas conexões nas quais ainda podemos existir, territórios relacionais de existência:


    (…) inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensamento se obstina em apreender a si mesmo e se põe a girar como um pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos Territórios reais da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes. Ao invés de sujeito, talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivação trabalhando, cada um, mais ou menos por conta própria. Isso conduziria necessariamente a reexaminar a relação entre o indivíduo e a subjetividade e, antes de mais nada, a separar nitidamente esses conceitos. Esses vetores de subjetivação não passam necessariamente pelo indivíduo, o qual, na realidade, se encontra em posição de “terminal” com respeito aos processos que implicam grupos humanos, conjuntos socioeconômicos, máquinas informacionais etc. Assim, a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso, francamente discordantes11.


    Neste sentido buscamos identificar como os atores anônimos do cotidiano podem redescobrir a configuração de seu espaço, imaginado a partir da (re)elaboração de sua cidade subjetiva. Há uma necessidade latente e expressa em todas as instituições sociais, a escola, a família e o lar. Trata-se de revitalizar nossas comunicações de um modo mais sensível. Ou, por outra, compreender melhor a comunicação como um movimento de processar. Fundamento da educação. Guattari cita um exemplo pessoal de viver a cidade subjetivamente:


    Um dia quando eu caminhava em uma grande avenida de São Paulo, senti-me interpelado ao atravessar determinada ponte, por um locutor não localizável. Uma das características dessa cidade, que me parece estranha em vários aspectos, consiste no fato de que as intersecções procedem frequentemente, por níveis separados por grandes alturas. Enquanto meu olhar, se dirigia de cima para baixo, para uma circulação densa que caminhava, rapidamente formando uma mancha cinzenta infinita, uma impressão intensa, fugaz e indefinível invadiu-me bruscamente. Pedi então que meus amigos continuassem sua caminhada sem mim, e como um eco das paradas de Proust em “seus momentos fecundos” (o sabor da madalena, a


  7. Recentemente em Sorocaba houve a ocupação por um grupo de artistas do Parking House - Galpão de Armazenamento de laranja, da antiga estação ferroviária, um local abandonado há 30 anos pelo governo estadual, que foi por eles rebatizada como Estação Laranjada e iniciou-se um mutirão de limpeza, pintura(grafite), plantio de árvores regionais, horta comunitária foi um movimento inclusão, de arte livre de rua, de convivência, e solidariedade http://sorocabadeverdade.com/estacao-laranjada-a- energia-criativa-sorocabana-que-desafia-os-detentores-do-poder/.

8 Trata-se do crime ambiental ocorrido em Mariana, MG por conta do rompimento de uma barragem de contenção em área de exploração mineral com a morte do Rio Doce. https://www.mpes.mp.br/Arquivos/Modelos/Paginas/NoticiaComFoto. aspx?pagina=1080.

  1. Trata-se do Projeto de Reorganização Escolar do Governo do Estado de São Paulo, 2015.

  2. Ver rios voadores. http://riosvoadores.com.br/.

  3. GUATTARI, F (2001). Op. cit., p. 17.


    dança dos sinos de Martinville, a pequena frase musical de Venteuil, o chão desnivelado do pátio do Hotel

    de Guermante...) imobilizei-me em um esforço para esclarecer o que havia acontecido comigo12.


    Perceber Sorocaba, no âmbito do Grupo de Estudo, em uma região metropolitana que agrega 26 municípios e é nomeada como Cidade Educadora13, é sobretudo perceber o papel político que a educação tem de estender os braços e conhecer/aproximar a imanência destes conflitos da urbe que clamam por saídas, linhas de fuga e assim vão constituindo outros territórios de existência. Todas as interpelações das políticas públicas, das cidades educadoras, país educador de fato emanam da emergência de outros acontecimentos políticos. Sobre Hiroshima e Nagasaki, Marcos Reigota em minuciosa pesquisa capta a subjetividade na/da Cerimônia da Paz em Hiroshima14, a construção permanente de outros territórios existenciais:


    Os sobreviventes e os familiares dos mortos iam chegando em pequenos grupos. Caminhavam devagar, cumprimentavam-se como velhos companheiros. Estavam vestidos discretamente, os homens com gravata e camisa de mangas curtas. Usavam chapéu de pano. Todos traziam flores nas mãos. Os inúmeros fotógrafos e câmeras de televisão trabalhavam incessantemente. Uma voz repetia no alto falante que, durante a cerimônia, não seria permitido fotografar, e solicitava que todos colaborassem. Às 8 horas, “Hiroshima Cerimônia pela Paz” teve início com uma homenagem a todas as vítimas da bomba atômica. Nesse momento, discursaram Tadashi Akida (o prefeito da cidade) e um representante das famílias atingidas. Houve a oferenda da água, com amostras de 16 cidades que a forneceram quando toda Hiroshima estava contaminada. Nesse momento, eu já não conseguia registrar mais nada, pois a emoção era muito forte. Não registrei o nome dos representantes das vítimas, nem o que disseram. Esperava encontrar essas informações no programa, no entanto, elas não foram publicadas. Depois foi a oferenda das flores. Representantes políticos dos mais diversos partidos, vestidos de negro, com grandes flores de cetim na lapela, depositaram coroas de flores diante do monumento aos mortos. O silêncio era audível e as cigarras contribuíam com a sua música. Entre os que participaram da oferenda das flores, estavam o prefeito, o presidente da Câmara Municipal, o representante das famílias atingidas e o representante dos sobreviventes da bomba atômica. Exatamente às 8h15, foi feita a oração silenciosa de um minuto. O som de um enorme sino lembrava ao mundo que, naquele momento, há 55 anos, havia sido lançada, pelos Estados Unidos, uma bomba atômica sobre a população civil da cidade de Hiroshima. Depois foi lida, pelo prefeito, a Declaração pela Paz. A Declaração pela Paz foi publicada, em inglês, no programa oficial. Inicia- se com as seguintes frases: “Hoje nós estamos testemunhando o último 06 de agosto do século XX. Há precisamente cinquenta e cinco anos, uma única bomba atômica provocou o inferno na terra”15.


  4. GUATTARI, F (1992 a). Caosmose: um novo paradigma estético. Editora 34, São Paulo.

  5. As Cidades Educadoras têm como norte uma Carta de Princípios. "O principal objetivo de uma Cidade Educadora é criar políticas públicas e divulgar, para que essas ações se tornem modelo para outras cidades, sempre com o intuito de melhorar a vida dos habitantes.” O conceito de Cidade Educadora nasceu em Barcelona em 1990, contando com cidades da Espanha e Portugal. No Brasil são 12 cidades associadas incluindo Sorocaba.

  6. “Apesar do nosso forte desejo de paz, o mundo continua em luta com guerras, fome, pobreza e armas nucleares. As armas nucleares foram construídas pelos seres humanos e, se quisermos construir o novo século, genuinamente pacífico, todos nós, seres humanos, devemos, com nossas próprias mãos, deliberadamente, eliminá-las da face da Terra. Para realizarmos isso, precisamos primeiro procurar resolver os problemas de intimidação e violência que experimentamos em nossas vidas. Foram nossos avôs que trouxeram a vida novamente a Hiroshima e, com eles, temos aprendido que, verdadeiramente podemos, se trabalharmos juntos, criar um mundo feliz e pacífico”. Concluída a leitura, foram soltas centenas de pombas” REIGOTA (2002).Op. cit.

  7. REIGOTA (2002). Hiroshima e Nagasaki. pp. 56-57 http://www.researchgate.net/publication/281240623_Hiroshima_e_Nagasaki.


    O Grupo de Estudos Perspectiva Ecologista da UNISO, atento a tudo isso procura nas práticas pedagógicas e/ou artísticas relacionadas ao meio ambiente, nos movimentos da Rede Reletran16, viver os conceitos propostos por Guattari, em “As três ecologias” uma obra escrita no ano de 1989, mas que guarda a latência da atualidade. Deleuze17 observou que certas obras não perdem a novidade, mas nós é que perdemos a capacidade de encontrar nelas a seiva em devir. Se o contexto muda, temos que mudar com ele, deixar de lado a acomodação conservadora. Claro que isto está associado a um profundo senso da filosofia, que para Deleuze traz consigo e consiste neste ato de se debruçar e mergulhar na criação de conceitos.

    Voltar as obras de Paulo Freire, como faz o martim-pescador, para pescar antes do peixe o instante de encontro e solidarizar pesquisas. E num contexto geral onde os conflitos ecosóficos e socioambientais e políticos replicam na educação, a opressão cada dia mais perversa, adquire outras facetas para investigar, como grandes peixes escorregadios para um pequeno e leve martim.

    Assim quando há encontro, há alento para narrar esses conflitos, mas, sobretudo ter ouvidos para escutá-los com delicadeza, são como as sirenes da cigarras em sua ladainha, clamam escuta sem fim. Acreditamos que fazer educação já é em si um ato político, como bem definiu Paulo Freire18 em devir pássaro, uma escuta silenciosa mas não silenciada de múltiplos territórios de existência. Há necessidade de um empenho mais potente sobre o campo da ecosofia sugerida por Guattari norteamento, reencantamento para nossas pesquisas e nossas vidas e,e,e... Um esforço de martim-pescador e um silenciamento atento de coruja.

    E justamente este ponto indica uma inflexão com a Rede Ecosofia – Ética para o século XXI. A diferença é de que um grupo é motivado organizado, por um programa de pós-graduação em educação e o outro pela produção de encontros de ecosofia que empreende um esforço de construir outros territórios existenciais da vida cotidiana a partir da arte, entre outras atividades deste grupo cuja a marca é a heterogeneidade e a diversidade de experiências artísticas. A diferença como o falcão peregrino é o que importa (transporta, migra, imigra) daí é prudente caminhar por outras tribos senão vital. A repetição é mortífera. Por, isso ritornelo:


    O processo binário de desterritorialização e reterritorialização é especialmente notável na música por meio das hibridações que estão ocorrendo, perceptível no movimento dos pássaros. É preciso que haja um entendimento mais adequado do papel de uma educação voltada para este meio-ambiente não estável em que vivemos, ou seja, o ambiente escolar, cujo espaço é invadido e permeado pela violência, entre outros desdobramentos sociais multipolares em acelerada mutação19.


    Como a coruja faz em silêncio, seu mergulho para o bote20 prevê a trajetória, os obstáculos, os predadores, a distância e a potência do impulso antes do movimento. Conhecer não só na discussão teórica dos conceitos, mas vivenciá-los em atividades práticas que convidavam provocam os sentidos, sensibilizam o corpo, fazendo surgir outros corpos afectados por uma outra lógica, mais sensível, mais apto a invenção, a criação de novos mundos. De fato estes encontros potentes pela diferença são mais permeáveis ao que percebíamos no Grupo de Estudos Perspectiva Ecologista da Educação o


  8. Rede Latinoamericana e Européia de Trabalho Social e Comunitário que em Sorocaba promoveu entre 2013 e 2015 Curso

    Formação em Práticas Sociais em Ambientais – UNISO, Sorocaba, SP.

  9. DELEUZE, G (1992). O que é a filosofia? Editora 34. Rio de Janeiro.

18 FREIRE, P (1987).Op. cit.

  1. CATUNDA, M (2016). A B C dos encontros sonoros: entre cotidianos da educação ambiental. Hipótese, p.71. https://drive.google. com/file/d/0B4VVtZy9vhzvdndWUVVlcm1SZGs/view.

  2. Ver estudo bioacústico sobre a coruja. 2017. https://www.youtube.com/watch?v=6pWub12DUoU&sns=fb> .


    entre universidade e movimentos sociais, ecológicos, de educação, de segurança alimentar, coletivos de arte, permacultura, que assim palpitam a imanência do que ocorre nas referidas cidades e suas circunvizinhanças ressoa para dentro das escolas. Uma outra forma, que não possibilidade de ultiplicidade eaquela corporativa, cujo interesse público “verde” é meramente econômico e não de convívio, diálogo, solidariedade. Paul Virílio, filósofo urbanista, alerta:


    De nada adiantará importar as teorias do século XX, as práticas organizacionais do século XIX ou, as pretensões cientificistas de um certo marxismo de 40 anos atrás. Tudo isso morreu com a queda do muro de Berlim, com o fim da ilusão do socialismo não democrático e com o fracasso da experiência soviética. Há um trabalho de reconstituição da justiça social a ser feito, em torno da noção de ecologia cinza21.


    Convidado especial da Rio-92, reunião sobre os destinos do planeta (que completou 20 anos, a Rio+20 em 2012), à qual o filósofo não pode comparecer e por isso gravou um vídeo, enviado ao encontro. Virílio indentifica duas ecologias: a verde, de substância, do ar, da água, da fauna, da flora, e outra, cinza, sem cor, a da distância. A poluição da natureza se junta, em grande dimensão, à poluição da distância entre os homens, entre os países que habitamos, pois não habitamos apenas o ar, a água, as pedras, mas, sobretudo, as distâncias. Como humanos, fazemos parte do universo das proporções, nosso corpo tem uma dimensão, nossa casa também, mas a relação entre os seres humanos habita outra dimensão. Para Virílio, a velocidade das novas tecnologias esmaga essas distâncias. A compressão temporal é uma poluição das grandes dimensões naturais.


    Trata-se de um fechamento que, em breve, tornará insuportável a convivência entre os seres. Não haverá mais espaço físico nem temporal separando as pessoas. A cibernética e as viagens supersônicas comprimem o mundo como numa prisão cujas paredes se movessem diminuindo o espaço existente. Isso também faz parte da ecologia, da existência e deve ser incorporado nos projetos de construção de justiça social na democracia, ou seja, superar o efeito de prisão suscitado pela compressão do tempo e do espaço22.


    No estudo da ambiência sonora, cada vez mais parece vigorar um ouvir/escutar sujeito aos controles. Botões, fones, dispositivos das interfaces, comandos e teclas, telas de touch screen (que dão a impressão tátil de dissolver os confinamentos/controles cada vez mais acirrados). As prisões, agora, não têm grades. São janelas “abertas”.


    “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo, Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controlar ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operam com a duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas ainda que elas sejam destinadas a interferir no novo processo. Não se deve perguntar qual o regime mais duro, mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições [...] não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas23.


    Há que se inventar outra rosticidade ambiental, que expresse a multiplicidade das possibilidades de invenção de territórios existenciais, ela aparece em movimentos culturais e ambientais, dos quais os referidos grupos estão cada vez mais envolvidos. Para viver os conceitos é preciso sair pelo mundo,


  3. VIRILIO, P (1984). Guerra pura a militarização do cotidiano. Brasiliense. São Paulo.

  4. VIRILIO, P (2001). “A política do pior e do melhor das utopias e à globalização do”, vol. 16, pp. 7-18, dez Revista Famecos

    (entrevista) Porto Alegre.

  5. DELEUZE, G (1992). Conversações: 1972-1990. Editora 34: Rio de Janeiro, p. 219.


    o mundo que emana. Ir às escolas, creches, associações, agremiações, unidades de conservação, estender, alongar enfim chegar em locais (contextos) onde se movimentam e palpitam formas, entre outras perspectivas de/para a educação.


    PROCESSO 1 (decolagem)

    A pesquisa sobre o canto dos passáros foi iniciada há 27 anos, depois de uma excursão na Amazônia, no município de Sena Madureira, Acre em 1989, resultou na dissertação de mestrado intitulada “O canto de céu aberto e de mata-fechada” na Escola de Comunicação e Artes ECA/USP (1994)24 na linha de pesquisa Comunicação Arte e Educação.

    Até então não conhecia Murray Schafer, seus estudos sobre “paisagem sonora”, autor de Ouvindo Pensante, que teve sua obra publicada no Brasil em 1993, no mesmo ano da defesa da dissertação. Só recentemente tomei contato com os estudos de Berny Krause25, seus conceitos que diferenciam biofonia de geofonia, e suas experimentações solitárias abordando o universo sonoro de ecossistemas muito especiais, incluindo apuradas técnicas de gravação. A linha que estava seguindo era diferente, porque o tema de estudos de paisagem sonora, não era desenvolvido no Brasil. Em minhas pesquisas seguia o fluir das próprias observações e enfrentava muitos obstáculos por insistir no tema. Durante uma década, não foi possível encontrar orientação para o doutorado. Como educadora a tentativa era articular tudo que era vivenciado, observado e estudado. Comecei com os estudos de Hércules Florence26 cuja sensibilidade durante a famosa Expedição Langsdorff (1829), indicava para mim um caminho diferente em sua experiência de registro de vozes, à qual denominou “zoophonia”.

    Por esse relato, Florence foi considerado pioneiro da bioacústica. Mas o que propunha não era apenas uma disciplina da Biologia para garantir a investigação da vocalização dos animais como exibições comportamentais, detendo-se estritamente à “função biológica” dessas exibições. No estudo mais detido do texto sobre zoofonia, pouco conhecido e divulgado, a intenção de Florence foi interpretada com limitações. Tanto as suas criativas partituras, repletas das gradações de matizes sonoros, como suas observações sensíveis deixaram claro que levava em conta a percepção das formas de emissão como expressão sonora da paisagem. Concentrou-se no que ouvia expressivamente, a sensação de estranhamento dos sons de uma paisagem totalmente nova aos seus ouvidos europeus. Hercules Florence apaixonou-se pelo Brasil, aqui se casou e viveu em Campinas até o final dos seus dias.

    Logo que aqui aportou, foi informado que os índios utilizavam a arte de imitar os cantos e sons dos animais para fazer emboscadas noturnas. Algo que apavorou Langsdorff que acabou enlouquecendo durante a expedição.

    Florence gradativamente percebeu com estes exercícios de escuta para decifrar os sons e o conjunto que implicava na própria sobrevivência de seu grupo, para tentar identificar quem, de onde vinham os gemidos, crocitados, estridulados, grasnados, enfim acabou por notar que nossos ouvidos imediatamente selecionam e comparam os sons por semelhanças timbrísticas. Assim, foi comparando os sons desconhecidos aos instrumentos musicais que conhecia. Desta forma vitalmente intuitiva, durante as andanças no território brasílico, como um goataçara27, compreendeu que era possível ampliar o repertório e o conhecimento da paisagem em sua ambiência sonora, que vai tornando-se familiar ou


  6. CATUNDA, M (1994). O canto de céu aberto e de mata fechada. Edufmt, Cuiabá.

  7. KRAUSE, B (2013). A grande orquestra da natureza. Descobrindo as origens da música no mundo selvagem. Zahar, Rio de Janeiro.

  8. FLORENCE, H (1993). A zoophonia. Edufmt. Cuiabá: Edufmt.

  9. Mesmo que peregrino, passeador, viandante ou nômade, em tupi-guarani.


única pela percepção das gradações da zoofonia produzida pelas vozes notadamente musicais dos animais, pássaros ou peixes que vivem em determinado lugar.


Pássaros coloridos costumam possuir um canto mais elaborado com ritmos entrecortantes, chiados e vários ruídos entremeados por melodias excepcionais. Mas os verdadeiros músicos cantam nos estratos intermediários de mata onde se tornam notáveis não por cor, mas por som. Não precisam da cor porque usam com maestria as possibilidades da acústica especial, dos lugares onde a luminosidade se equilibra com a acústica proporcionada pela densidade de galhos e troncos, nem grossos nem finos, que fazem seu canto reverberar com muito mais força28.


O estudo continuou, resistiu com gravações esporádicas que hoje constituem um pequeno arquivo sonoro. Em 2008 com base na pedagogia Waldorf, no Curso de Formação de Facilitadores Musicais/ Antropomúsica (Ouvir Ativo), 2008/2010 foram investigadas e propostas práticas musicais ligadas ao exercício de um ouvir ativo.

Em 2009 com o ingresso no curso de doutorado em Educação e Cotidiano Escolar, na linha de Perspectiva Ecologista da Educação algumas premissas teóricas puderam ser retomadas e ampliadas. Foram inúmeras publicações, congressos e atividades com práticas artísticas realizadas. Ao lado da reflexão teórica sempre uma abertura para o experimental, nas oficinas, passeios de campo afinal a formação de pedagoga foi mais influenciada pelas artes plásticas, no espaço do Ateliê Livre e nos desdobramentos educativos do Museu de Arte e de Cultura Popular da Universidade Federal de Mato Grosso, do que em sala de aula.

A tese resultante intitulada A, B, C dos encontros sonoros: entre cotidianos da educação ambiental foi defendida em 2013, traz uma narrativa dos encontros, possibilidades e desafios que esta pesquisa vem encontrando ao longo da trajetória acadêmica. Reflete sobre o amadurecimento do campo da educação ambiental no Brasil, dos estudos do cotidiano escolar, que adquirem linhas de força para discussão dos mais diversos impactos, mudanças ambientais contemporâneas29.

Em 2010 com a oportunidade de participar da pesquisa que contou com o apoio do CNPq30 teve como objetivo principal sensibilizar para os sons do cotidiano escolar, observar as paisagens, silenciar e perceber as potências sonoras e musicais do ambiente escolar. Atualmente como docente do Curso de Formação de Educadores Ambientais, PFEA, Ita, em Santa Catarina, práticas pedagógicas, artísticas/ inventivas ligadas ao meio ambiente vem sendo um laboratório para a elaboração de mapas diversos. A audição é um sentido eminentemente geográfico e ligada a dois outros sentidos interdependentes, o equilíbrio e a orientação.

Como musicista e pedagoga, o interesse e estudo sobre o universo sonoro do canto dos pássaros nas exatas medidas das trocas e conexões, como outras pesquisas, lugares, grupos ultrapassou a mera observação como pássaros passou a migrar. Muitas das composições compostas ao longo dos últimos anos procuram uma aproximação – devir pássaros. Sons que produzem como chamados de voo, estalidos de bico, martelados, estalados, atritados são os ecosons podem levar a uma interpretação


28 CATUNDA, M (2012). ”Território, ambiente, educação: sonora contemporaneidade”. PREVE, Ana Maria Hoepers et al. (Orgs.).

Ecologias inventivas: conversas sobre educação. Edunisc, Santa Cruz do Sul, p. 46.

  1. REIGOTA, M et al (2011). “Ecoando ressonâncias da educação ambiental: por uma ecologia sonora sensível”. ERAS: European Review of Artistic Studies, vol. 2, n°. 1, pp. 64-83, jun. http://www.eras.utad.pt/revista_estudos_interdisciplinares.html.

  2. A pesquisa “Paisagens sonoras, educação ambiental e cotidiano escolar: Um estudo em escolas de Botucatu e Sorocaba- SP ”ocorreu entre 2010 a 2012 com a participação de duas oficinas uma em junho de 2011durante o inverno e na seca (Demétria em Botucatu) e Escola Estadual Rafael Orsi Filho (Sorocaba, Julio de Mesquita) na primeira chuva da primavera. http:// paisagensonoras.tumblr.com/.


    sonora/musical. Também atividades unindo o corpo e o ouvido, tal como a construção de ninhos31. Na pesquisa do PNPD/Capes, o conceito trabalhado é o de extinção do som, a extinção dos cantos. Parte da obra Nagasaki e Hiroshima de Marcos Reigota32, para pensar depois do fim, o cotidiano da educação ambiental, a ecosofia no contexto contemporâneo ressoando.


    PROCESSO 2 (encontros ecosóficos, um meio minúsculo)

    Guattari concebe a Ecosofia como um processo ético-estético-político, uma práxis relativa às Três Ecologias: a do meio-ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana. Pretendo demonstrar como este processo se relaciona com as atividades nos Encontros Ecosóficos que realizamos nos últimos quatorze anos.

    Os primeiros encontros aconteceram entre 2003 e 2006 e se deram por meio das Viagens Ecosóficas onde um roteiro ecoterapêutico com duração variável entre 3 e 6 dias era o meio-dispositivo para experimentar o proposto por Guattari. Grupos heterogêneos com entre 6 e 12 participantes adultos, se hospedavam em pousada confortável porém despojada, geralmente em construções bio-arquitetônicas, localizada em uma APA (Área de Preservação Ambiental). O locus das atividades era o espaço natural da pousada e todo o ambiente do entorno, que tornava acessível a biodiversidade do ecossistema, como mar, lagoas, cachoeiras, formações rochosas, montanhas, matas, trilhas, vegetação abundante e animais. Realizamos encontros em Ilha-Bela-SP, Enseada da Cajaíba-RJ, Praia do Rosa-SC e outros lugares.

    Uma equipe transdisciplinar flexível facilitava as atividades, geralmente composta por profissionais da saúde em conexão com as artes e que atuam em conjunto para além das suas especialidades, abordagem, espaço e tempo particulares, subvertendo assim a atuação tradicional. Deste modo tínhamos o psicoterapeuta/poeta, o musicoterapeuta/músico, o terapeuta corporal/dançarino, o naturólogo/xamã. Apesar da configuração da equipe, as atividades não tinham foco no terapêutico, mas se ampliavam em processos ético-estéticos, pondo em movimento a proposta de Guattari33 para reinventar a singularidade, mais localizada na arte do que na ciência, quando afirma que “em relação ao conjunto dos campos ‘psi’, este deve se instaurar no prolongamento e em interface aos campos estéticos.” Quando evidencia a necessidade de “reinvenção permanente retomado do zero, do contrário os processos se congelam numa mortífera repetição”. E diferente de uma tradição clínica e de laboratório, aponta para uma “tensão existencial operadas por intermédio de temporalidades humanas e não-humanas”, sendo que por estas últimas entende “o delineamento e o desdobramento de devires animais, vegetais, cósmicos”34.

    Com o tempo, o formato das viagens foi amadurecendo e, à medida em que nos afastamos das modelizações importadas da formação acadêmica em Musicoterapia, o roteiro ecoterapêutico deu lugar às residências artísticas, onde ampliaram-se as possibilidades para articular os conceitos e as propostas de Guattari. Do terapêutico preservou-se o cuidado, a escuta atenta às necessidades singulares e a sensibilidade. Assim, a partir de 2012 até o presente, realizamos residências artísticas no sítio sede da Taanteatro Cia em São Lourenço da Serra-SP, no “Viveiros de Projetos” em Araçoiabinha-SP, no Sítio Bons Amigos em Caponga-CE, na Fazenda Santa Maria em Guaxupé-MG e na Rosa dos Ventos em Caldas-MG.


  3. Apresentado no Curso de Formação em Práticas Sociais, Reletran com preparo do corpo para construção de ninhos. CATUNDA, M & MACHADO, C (2015). “Outros movimentos se aninham: por um corpo todo ouvido”. Apresentado na XVIII Abrapso, GT Ecologias outras: traçados poéticos, estéticos e políticos, Fortaleza, 2015.

  4. REIGOTA, M (2002). Op. cit.

33 GUATTARI, F (2001). Op. cit., pp. 21-22.

34 Ibíd., p. 20.


Seja como roteiro ecoterapêutico ou residência artística, a alimentação nas Viagens Ecosóficas algumas vezes conta com a participação dos viajantes em sua feitura. A alimentação vegetariana é, conforme a oferta da região, preferencialmente agroecológica. Não se trata de uma disciplina de purificação, mas de pensar o vegetarianismo como dispositivo para “reinventar a relação com o corpo” no que tange a saúde, e acima de tudo como exercício de coerência ética: reduzir danos sobre o impacto ambiental e a violência utilitária contra animais implicados no ato de comer.

Diferente do turismo “sem sair do lugar”, a aliança com a Eco é agenciada a partir do deslocamento da ecologia urbana, onde a suspensão da rotina em direção a um ambiente e a temporalidades mais naturais são dispositivos para desterritorialização dos engendramentos capitalísticos. Extrair do cotidiano os objetos de consumo, os apelos midiáticos e a velocidade instantânea da informação e da comunicação, provoca uma suspensão do desejo, como falta e a relação direta com a Eco engendram novas alianças como dispositivo para o desdobramento de devires animais, vegetais, cósmicos.

As caminhadas, trilhas, cavalgadas, banhos em lagoas e no mar, acionam na marcha e no nado o equilíbrio e a resistência do corpo em contato poroso com diversos tipos solos, elementos, texturas e temperaturas. A leitura da paisagem e dos microclimas, a contemplação e escuta ativa de forças, animais e pássaros, num exercício de cartografia sonora e sensível do espaço, criam novas possibilidades aliadas ao desejo de vida enquanto potência e produção. A convivência do grupo transitando por territórios arriscados e fora do ambiente cotidiano dos participantes, se torna dispositivo para reinventar maneiras de ser-em-grupo, orientadas para solidariedade ao mesmo tempo para a afirmação da singularidade. “Aberturas processuais” de percepção, afecção e novos meios de subjetivação, produção de vida e criação de si.

É nos fazeres artísticos que a maior parte dos acontecimentos é experimentada nas Viagens Ecosóficas: platô onde a ecologia da subjetividade e do fantasma se processa em produções estéticas por meio de “nacionalidades desterritorializadas, tais como a música, a poesia35. A pintura corporal, a ecoperformance desdobrada na performance corporal e vocal, a construção de instrumentos, as línguas inventadas e a musicalidade festiva são meios de “elaboração de um suporte expressivo singular ou, mais exatamente, singularizado, de dispositivos produtores de subjetividade”36 e de processos de ressingularização. Destes, destaco mais abaixo a construção de instrumentos e a invenção de línguas.

A partir de 2010, em pararelo às Viagens Ecosóficas, realizamos cursos tendo por temática central a Ecosofia, Ética e Estética, onde além de aprofundarmos o pensamento de Deleuze e Guattari, articulamos conceitos de outros pensadores nômades. Como na ética dos afetos em Espinosa37, na reinvenção do cotidiano de Certeau38, em Mafessoli39 e Franco Berardi40. Foram quatro cursos em São Paulo, dois no Mundo Pensante, um expoente espaço cultural da cidade e dois cursos em sede própria. Outro curso aconteceu no Jardim Botânico de Brasília, com apoio do GDF e Livraria Cultura, onde foram feitas palestras, e por fim, um curso voltado para educadores aconteceu no SESC Tubarão-SC. O programa geralmente distribuido em 8 encontros de 4 horas, era recheado de poeisa, música, imagens e vídeos. Ao final de cada curso, a proposta de uma ação micropolítica, articulava um fazer artístico aos conceitos estudados, algumas vezes em forma de intervenção urbana, como foi a plantação de orquídeas numa praça da Vila Madalena, em conexão com o projeto Orquídeas na Vila, coordenado


35 Ibíd., p. 50.

  1. Ibíd., p. 54

  2. ESPINOSA, B (2009). Ética. Autentica. São Paulo.

38 CERTEAU, M (1974). “A invenção do cotidiano”. Vozes, vol. 1 e vol.2 . Rio de Janeiro. 1974

  1. MAFESSOLI, M (2010). Saturação. Iluminuras. Rio de Janeiro.

  2. BERARDI, F (2013). Félix: Narracion del Encuentro com Piensamento de Félix Guattari. Cactus. Buenos Aires.


    pelo educador Diego Ramos Lahóz. Outras participações importantes nos cursos foram a de Maura Baiocchi, diretora da Taanteatro Cia que falou sobre Ecoperformance, conceito chave que é parte do seu projeto de mestrado no Núcleo de Subjetividade da PUC-SP, publicado pela própria cia no livro ‘MAE – Mandala de Energia Corporal’41; Gal Martins diretora da Cia Sansacroma, que falou sobre A Dança da Indignação, metodologia públicada em livro homônimo e seu trabalho com dança contemporânea negra na periferia de São Paulo; a psicológa esquizoanalista Priscila Tâmis, nos apresentou seu trabalho de mestrado (UNESP/USP), publicado no livro da Editora Prismas ‘Saúde e Subjetividade na Mobilidade Urbana – experiência cartográfia de uma cidade (im)possível’; por fim um encontro entre os intérpretes- criadores da Cia Sansacroma com a terapeuta ocupacional e pesquisadora Denise Dias Barros, que expôs sua pesquisa de mestrado (USP) publicada no livro da Editora Fiocruz ‘Itinerários da Loucura em Território Dogon’.

    A partir de 2015 o formato de curso dá lugar ao Compondo com Potências (CP), parcerias de estudo e pesquisa em composições transdisciplinares, sempre tomando por eixo as Três Ecologias. Foram oito edições: CPI e II Devir Pássaro com a musicista e educadora Marta Catunda; CPIII a música e os modos de vida indígenas com a compositora Marlui Miranda ; CPIV e V Biodiversidade Subjetiva com a filósofa e terapeuta corporalista Regina Favré; CPVI As Ecologias na obra de Guimarães Rosa com a pesquisadora Celina Ramos; CPVII Ecologias Corporais com a psicóloga corporalista Zeneide Monteiro; CPVIII Direito Animal no Brasil onde o advogado Rafael Speck apresenta seu trabalho de mestrado defendido na UFSC.

    E desses modos colocamos em movimento a proposta de Guattari, para quem a ecosofia social consiste em desenvolver práticas específicas potentes em modificar e a reinventar maneiras de ser- em-grupo, “o princípio particular à ecologia social diz respeito à promoção de um investimento afetivo e pragmático em grupos humanos de diversos tamanhos”42.

    O interesse coletivo ampliado na forma de tratamento, de empreender ações mesmo que em princípio não tragam proveitos imediatos são fundamentais em longo prazo por serem “portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade” Guatarri43. Interessante notar que muitos grupos, e coletivos atuais que empreendem atividades, não trazem lucro, não trazem vantagens, mas são potentes em devires. Para Guattari “é o conjunto do futuro da pesquisa fundamental e da arte que está em causa”.

    A ecoestética44 dos laços relacionais proposta por Guattari em um contexto de século XXI, reencantam e clamam por renovadas formas de convívio, existir e reexistir. Formas estas porosas a arte e as práticas sociais coletivas de fortalecimento dos laços comunitários que nos trópicos tem a potência ameríndia, já notada por Guattari. Hoje, esta força eclode nos modos de vida comunitário nas favelas, nas reservas indígenas e entre os excluídos de forma geral, nas formas nascentes de permacultura, que estão pulverizados e semeados por todas as classes sociais. Como bem previu o autor quando propôs a ecosofia, esta capacidade de domínios moleculares de sensibilidade, inteligência e desejo não corresponde as hierarquias socioeconômicas estabelecidas, não segue a lógica do capital/mercado e estão atomizadas em diversos setores e classes, criando uma espécie de porosidade de novos territórios imaginários férteis, as manifestações de uma nova sensibilidade, uma outra política”.


  3. BAIOCCHI, M & PANNEK, W (2013). MAE Mandala de Energia Corporal. Transcultura. São Paulo.

  4. GUATTARI, F (2001). Op. cit., p. 45. 43 Ibíd., p. 51.

44 CATUNDA, M (2016). Op. cit. p.191.


A ecosofia para Guattari deve substituir as antigas formas de engajamento religioso, político e associativo. Um movimento proliferante “múltiplas faces que prolifera instâncias e dispositivos analíticos e produtores de subjetividade”45. A afirmação da “subjetividade da ressingularização capaz de receber cara-a-cara o encontro com a finitude sob a forma do desejo, da dor, da morte”(...) “novas práticas sociais, estéticas, de si na relação com o outro, como estrangeiro, como estranho” Guattari46, já prevendo que parecerá estranho e distante das urgências de 1989, ano de publicação das Três Ecologias, porque quando escreveu não parecia ser um assunto urgente. Ainda hoje é o que estamos observando com a proliferação de crises, momento fértil para a articulação da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado.


PROCESSO 3 (invençãodeinstrumentosmusicais- produçãodesubjetividadeeressingularização)


Devemos entender o processo artesanal com produção de sensibilidade capaz de se transformar, de se caotizar e reestruturar em um outro território. A faceta artesanal e potente da qual arte pode se utilizar. Neste processo arte e artesanato não sofrem influências hierárquicas entre si e passam a ser entendidas como ético-estético. Como criação de si47.


Um dos processos interessantes experimentados foi a invenção de instrumentos musicais com a participação de Felipe Adam Kurschat. Aconfecção de instrumentos é um processo de produção de fontes sonoras, sons e de subjetividade em devir com a natureza. Processo que acontece em duas etapas. A primeira etapa de experimentação no espaço, se dá por meio de caminhada para coletar materiais, onde o grupo interage com o ecossistema em suas diversas formas, texturas e sons. O caminhante assim comprometido com a imanência do presente, apreende o meio, criando conexões com a matéria prima que possibilitará a sua expressão. Ao tocar e ser tocado, ao perceber os materiais da natureza e escutar seus fenômenos, as “forças materiais penetrem no corpo, permitindo outras organizações, outras percepções, outras possibilidades de ações, ao mesmo tempo que aprendemos a lidar com forças e resistência da materialidade48. O ascetismo dá lugar a um devir criança, um ‘fazer arte’, a perda de controle, um jogo de brincar. A natureza torna-se um brinquedo coletivo onde todos podem tocar, deitar, lambuzar, produzir som, escutar. Diferente da infantilização regressiva, esta retomada da criança é um ritornelo em devir com sua própria história. Processo primário de subjetivação que entra num plano de fluxos e intensidades, onde formas e figuras estratificadas aparecem. As angústias e ansiedades que surgem neste movimento de assimilar o estranho, transmutam-se na expressão e na produção de um corpo sonoro gerando redes de afetos, de cognição, de percepção e de criação. Um devir música onde a música criada, cria o seu criador.

A segunda etapa implica na construção do instrumento com o material recolhido. A caminhada termina numa oficina, espaço onde ficam disponíveis ferramentas e materiais de apoio (cola, linhas de amarração, bambus, madeiras previamente cortadas, tintas). O lixo encontrado na caminhada também pode ser incorporado aos instrumentos e o reciclado torna-se potencial sonoro. No processo de construção, valores afetivos e históricos são colocados em cada peça que compõe o corpo do instrumento. O ato de juntar um material com outro pode ser encantado por significados, como por exemplo, de relações familiares e sociais. A construção de um instrumento torna-se a construção de


45 GUATTARI, F (2001). Op. cit., p. 54. 46 Ibíd., p. 55.

47 Foucault apud MACHADO, A (2004). Corpo e Arte em Terapia Ocupacional. Enelivros. Rio de Janeiro, p. 88. 48 Ibíd., p. 10.


si mesmo e da relação com outros. Ao se escutar, o grupo se acalenta, ri, discute, opina, se afeta pela subjetividade uns dos outros. Neste eros de grupo49 há um fortalecimento de vínculos e o medo, a angústia, o fantasma, os processos da vida e a construção transmutam-se em desejos afirmativos processados coletivamente. Encontro de potências num território ético onde as diferenças podem existir. Para construir é preciso deixar coisas, somar, lidar com o erro, o imprevisto; com a possibilidade de não ser exequível, de redirecionar o planejado, seja por mudanças acústicas, ou limites do material (fragilidade, dureza, durabilidade) ou, ainda, por questões pessoais (dificuldade manual, ansiedade, desistência), “êxito e fracasso têm o mesmo valor, não devendo, portanto, ser manipulados: o processo, o aprofundamento e a intensidade são mais importantes que qualquer objetivo ou produto50. A construção é um meio de se colocar no mundo e também uma maneira de abrir novas possibilidades de estar nele; um fazer onde o construtor descobre que tem possibilidade de produzir a vida como obra de arte (estética) e produzir a existência como criação (ética).


PROCESSO 4 (território de composição, a partir de alianças e encontros)

Os quatorze anos de implicação com a Ecosofia culminaram na composição orquestral e na produção do concerto ECO51; fazer que marca a conclusão da graduação em Composição e Regência no Instituto de Artes da UNESP em São Paulo, entre 2010 e 2016. Para além de obra autoral, Eco tem relação com a autopoiese52, obra autopoiética. Trata-se da ocupação de um território com intento de criar e compor um ecossistema vivo e potente, de produção de subjetividade, um campo de afecções eco-políticas e com isso, de contribuição com a pesquisa acadêmica. Território onde o termo compor é subvertido e se torna por com, por em comum e o papel do compositor é fomentar um ambiente composicional, onde composição se torna compositura (como em tessitura), e a sala de concerto propicia condições para hospedar um ecossistema sonoro vivo.

O diálogo musical em Eco se dá com estilos e linguagens pós-tonais, sobretudo com o microtonalismo do compositor italiano Giacinto Scelsi (1966)53, com a Ecologia Sonora do canadense Murray Schafer54, com a Biofonia de Bernie Krause55 e a Zoofonia de Hércules Florence56. Outros diálogos com as performances vocal e corporal se estabelecem com o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud e com técnicas propostas pela Taanteatro Cia. dos diretores Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek. O concerto é estruturado em quatro seções com linguagens e formações instrumentais distintas.

As seções 1 e 2, Raízes e Galhos e Patas, são as mais tradicionais tanto na escrita quanto na orquestração para sexteto de cordas e percussão sinfônica, em estilo microtonal e minimalista. Trabalhei com o conceito das durações em Bérgson, no sentido de descolar o ouvinte para temporalidades inumanas, como a dos minerais, vegetais e animais. Explorei os extremos entre silêncios e sons inaudíveis


  1. GUATTARI, F (2001). Op. cit, p. 45.

  2. CRAVEIRO DE SÁ (2003). A teia do tempo e o autista: Música e Musicoterapia. Ed. UFG, Goiânia, p. 46.

  3. ECO (2016). “Concerto”. São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=oGYQmtC5B5E.

  4. Autopoieses (do grego auto "próprio", poiéses "criação") conceito dos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana (1980), que designa a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. MATURANA, H & VARELA, F (1997). De máquinas e seres vivos. Autopoiese, a Organização do Vivo. Artes Médicas, Porto Alegre.

  5. SCELSI, G (1966). Ohoi Peça para16 cordas.

  6. SCHAFER, M (2001). A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do aspecto mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. UNESP. São Paulo.

  7. KRAUSE, B (2013). A grande orquestra da natureza. Zahar. Rio de Janeiro.

  8. FLORENCE, H (1993). Op. cit.


    contrapostos a velocidades e intensidades saturadas. Cito a instrução dada aos instrumentistas quando

    propus que fizessem devir:


    (...) pppp= ao som da pétala de um dente-de-leão pousando em superfície aquática; ppp= ao som de gotículas de água que ao longo das eras geológicas formam um cristal; fff= a biofonia da cópula de baleias jubartes; ffff= a geofonia de abalos sísmicos entre placas tectônicas que provocam (catástrofes humanas ou meras redefinições geográficas advindas de) fortes terremotos e tsunamis. Intensidades aquém de pp e além de ff, em ECO, se referem ao devir inumano. São intensidades que, para mais ou para menos, só acontecem no âmbito indomável e animalesco da perigosa e arriscada selvageria57.


    A seção 3, Asas é uma brincadeira com espacialidade musical. Brinquei com a poesia do Manoel de Barros e com a noção de Paisagem Sonora do Schafer, para criar uma festa para os sentidos. É também a exposição orquestral de uma pesquisa bioacústica associada à ornitologia, fruto das caminhadas de contemplação e escuta de aves nas Viagens Ecosóficas e das oficinas Devir-Pássaro com Marta Catunda. Recortei a paisagem sonora dos arredores do povoado rural de Biguatinga, região serrana e cafeeira do sudoeste mineiro, onde fiz gravações no nascer e no por do sol de um dia de inverno e um dia de verão e detectei o canto de 18 espécies de pássaros, 4 insetos e 1 anfíbio. Submeti o material a tecnologias de análise de frequência em laboratório eletroacústico, transcrevi em partituras com notação microtonal (24 quartos de tons) e orquestrei dispondo de instrumentos tradicionais (2 flautas, piccolo, clarinete e violino) e também de 3 flautas de nariz – instrumento indígena conhecido por zabelê – e uma dezena de apitos ornitológicos. Para compor o design deste jardim sonoro, tratei cada canto como série e dispus as 18 séries de pássaros, as 4 séries de insetos e a série do sapo ao longo de um ciclo circadiano, onde as vozes e os guizos da bicharada reagem aos diferentes graus de luminosidade que, desde o alvorecer, passando pelo crepúsculo até a noite, incidem ao longo de um dia. A pesquisa e a composição da Seção 3 de ECO desenvolveram-se ao longo de dois anos.

    A Seção 4, O Fim do Homem, certamente é a maior empreitada deste processo, tanto na fundamentação teórica que contorna a noção de Homem, quanto na inserção de um coro de 18 vozes, somado a criação de um complexo solo de contralto seguido por um dueto desta com a concretude do ruído de um motor de motosserra.

    Para contornar a noção deste Homem que finda, me apoio no paradigma Ecocentrado do ecologista norte-americano Aldo Leopold (2008)58, nas descrições sobre os Últimos Homens presentes no Prólogo do Assim Falou Zaratustra de Nietzsche (2014)59, nos conceitos de Homem-Rosto e devir em Deleuze- Guattari (1977)60, todos articulados ao conceito de Corpo-sem-Órgãos em Artaud (1998)61 descrito especificamente na imagem de Homem-Árvore62. Detalhar estes conceitos extrapola o objetivo deste artigo, mas suas descrições podem ser acessadas em ECO – Processos Composicionais e Autopoiese63.

    Em suma, este Homem é um sujeito Antropocentrado, inscrito em valores industriais capitalísticos que toma o corpo da Terra e seus recursos minerais, vegetais e animais conforme sua conveniência


  9. RODRIGUES, R (2016). ECO Processos Composicionais e Autopoiese. (Bacharelado em Composição). Instituto de Artes da

Unesp, São Paulo, p.39

58 LEOPOLDO, A (2008). Pensar como uma Montanha. Ed. Sempre-em-Pé, Águas Santas, Lisboa.

  1. NIETZSCHE, F (2014). Assim Falou Zaratustra. Companhia das Letras. São Paulo.

  2. DELEUZE, G & GUATTARI, F (1997). Mil platôs capitalismo e esquizofrenia, vol.3. editora 34. São Paulo.

  3. ARTAUD, A (1988). Eu, Antonin Artaud. Hiena Editora, pp. 105-110. Lisboa.

  4. Artaud apresenta o Homem-Árvore em uma carta-poema escrita em 1947, um ano antes de morrer, para seu amigo Pierre Loeb. O Homem-Árvore define para Artaud uma das expressões do Corpo-sem-Órgãos.

  5. RODRIGUES, R (2016). Op. cit.


    utilitária, numa cultura liberal-lixuosa de uso e descarte. Homem que segundo Nietzsche é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo. “O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso”64. Majoritário por excelência “homem-branco, adulto-macho”65. E que de fato, no desenrolar dramatúrgico do concerto não finda, mas se transvalora num Além-do-Homem, e se transmuta num Homem-Árvore (Artaud), dotado de um corpo ecossistêmico, esquizopresença66. Esquizopresença é um conceito em desenvolvimento que conecta “entre si a poética artaudiana da crueldade e as filosofias de Nietzsche e da diferença de Deleuze”. Com a esquizopresença, retornamos outra vez à criatividade absoluta do super- homem, à liberdade energética não codificável do corpo sem órgãos e às viagens na pura intensidade do esquizo deleuziano. Nas palavras de Baiocchi67, o conceito da “esquizopresença pentamuscular se desdobra no espaço-tempo ao gerar territórios artísticos-culturais que potencializam afirmativamente uma política focalizada no destino da humanidade, aumentando as chances das gerações futuras de engendrar e habitar um mundo ecoético com mais amor transmutado em ação, arte e alegria, no sentido da ética espinosana”. Deste modo, o coro terminal dos Últimos Homens, se transmuta numa floresta de Homens-Árvores, ecossistema sonoro que dá lugar à manifestação de Gaia e suas múltiplas vozes do feminino. Suavemente, o corpo matriarcal de Gaia composto de barro e sementes, ocupa o lugar patriarcal do regente, e num dueto com a motosserra-falo, trava um embate com o homem industrial que culmina no desejo afirmativo da vida sustentado por uma partitura vegetal.

    Definida a noção de homem, as questões da Seção 4 se tornam composicionais: quais vozes dariam voz ao Último Homem? Que qualidades teriam estas vozes? Como imprimir nesta emissão vocal uma impessoalidade destituída da forte noção ocidental de Eu? Assim, descartadas as expressões vocais da música ocidental, concluí que deveria empregar somente vocalidades ancestrais (indígena, africana, asiática, etc) e, sobretudo, uma vocalidade que pudesse ser criada. É neste ponto que se fez uma conexão estreita com as experiências de línguas inventadas e glossolalias nas Viagens Ecosóficas.

    Lancei o chamamento para uma audição de performers vocais não cantores, pessoas comuns e artistas leigos em música. Da audição, um grupo de 18 vozes heterogêneas – composto por pesquisadores atores, terapeutas e artistas do corpo –, se investiu em 5 meses de laboratórios de pesquisa e criação no que chamei Glossolalia Intensiva. A proposta foi explorar ampla e minuciosamente a musculatura fonatória tendo como suporte expressivo e roteiro para esta prática, os pontos de articulação e os modos de articulação constantes no quadro do Alfabeto Fonético Internacional, recortado no português em sotaque do sudeste brasileiro; isto com a intenção de imprimir na obra as marcas de uma paisagem sonora68. O resultado foram os solos vocais criados por cada performer que serviram de matéria composicional que, arranjados em seqüências e sobreposições, formaram a Seção 4.

    ECO é um processo transdisciplinar, território fértil e prenhe de potencialidades que certamente movimentou todos os que o compuseram: cerca de 50 pessoas entre docentes, pesquisadores, performers, instrumentistas e técnicos de dentro e de fora do Instituto de Artes da UNESP. Se um fazer micropolítico social, subjetivo, ambiental; se ação ética-estética em devir-revolucionário; se processo de


  6. NIETZSCHE, F (2014). Op. cit.

  7. DELEUZE, G; GUATTARI, F (1997). Op. cit.

  8. BAIOCCHI, M & PANNEK, W (2007). Teatro Coreográfico de Tensões. Azougue Editorial. Rio de Janeiro.

  9. BAIOCCHI, M & PANNEK, W (2016). [Des]construção e Esquizoprezença. São Paulo: Taanteatro Companhia.

68 Tal decisão confere a ECO o potencial de uma obra aberta; concerto que ao ser remontado em outra região linguística ou país, imprimi as marcas singulares de cada paisagem – tanto nos cantos dos pássaros quanto nas vocalidades das pessoas de dada região –, compondo ecossistemas sonoros vivos, fortemente afectivos e curiosamente originais.


ressingularização e reconquista da autonomia criativa, solidária e cada vez mais diferente; se um meio

minúsculo. São questões que cabem aos envolvidos e aos ouvintes desenvolver.


DEVIR PÁSSARO (cartas, apitos e ressingularização por gorjeio)

Um devir não é uma correspondência de relações, tampouco ele é uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. É o princípio de uma realidade própria ao devir (...) a idéia bergsoniana de uma coexistência de “durações” muito diferentes, superiores ou inferiores à “nossa”, e todas comunicantes Deleuze & Guattari69. Devir é da ordem da aliança. O devir é involutivo, a involução é criadora. Devir-animal é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, “entre” os termos postos em jogo, e sob as relações de aliança entre um e outro. Um princípio comum às três ecologias reside no fato de que sua abordagem dos Territórios existenciais depende de outra lógica: uma lógica pré-objetal e pré-pessoal, para ordem do inumano, que pode ser desdobrada em processos subjetivos primários. Cada tentativa de levantamento cartográfico é a elaboração de um suporte expressivo singular, ou mais especificamente, singularizado.

Em 2015 as cartas musicais dos pássaros como um dispositivo cartográfico foi apresentado em três encontros consecutivos com/entre os participantes do Grupo de Estudo Perspectivas Ecologistas, Reletran (Sorocaba) e a Rede Ecosofia – Ética para o Século XXI. Dois encontros ecosóficos, “Compondo com potências I e II” e a Mesa Redonda Devir Pássaro e na 32 Bienal com o tema Incerteza Viva com participação de Tetê Espíndola na Oca, Tapera Terreiro a obra aberta de Bené Fonteles (outubro de 2016).

A primeira experiência ocorreu no “Viveiros de Projetos”70 em Araçoiabinha (abril de 2015), uma unidade sócio ambiental com almoço vegetariano oferecidos pela Garfos - Grupo de Articulação da Feira de Orgânicos de Sorocaba onde/quando o convite aos participantes foi desenvolver uma escuta sensível, ampliar a percepção de territórios sonoros e musicais, consistir sutilezas do ouvir, escutar e compor ambientes em silêncio (composição com serragens coloridas) e sons, afirmar desejos de invenção singulares e coletivos inscritos na produção de mundos próprios. Da manhã até o final do dia, silenciar, perceber as dobras do espaço-tempo onde soam e ressoam, na aproximação da complexidade e da multiplicidade das relações possíveis, o encontro da ecosofia com a ecologia fluente dos pássaros. Na ocasião foi feita no chão sobre manto de feltro a leitura cartográfica dos pássaros. Houve ainda um lanche de confraternização ao por do sol para compor com outros Coletivos, de Sorocaba e entorno, presentes na “Troca de Saberes na Fogueira” de abril, que ali estavam acampados desde a noite anterior. Esta Roda de fogueira acontece mensalmente durante a lua cheia no espaço do Viveiro de Projetos e reuni diverso coletivos em conexão da cidade.

O segundo encontro ocorreu na cidade de São Paulo, no Laboratório de Processo Formativo de Regina Favre71, e teve o caráter de aprofundamento para demonstrar as potencialidades das cartas como dispositivo, estudar os pormenores de cerca de 40 pássaros conhecendo mais de perto seus ecossistemas, link de imagens e vídeos de seu habitat, as relações com o ambiente e com humanos


  1. DELEUZE, G & GUATTARI, F (1997). Op. cit, p. 15.

  2. O Viveiro de Projetos é um laboratório que surgiu da mistura de empreendedorismo, educação e bioconstrução. Constitui um Coletivo interessado em Dar vida a um design de permacultura uma organização aberta para gera renda mínima e promover educação na bioconstrução dos espaços, para se viver bem em comunidade. https://www.facebook.com/viveiro.deprojetos.7/ about?section=bio&pnref=about

  3. Regina Favre. filósofa, terapeuta, educadora, pesquisadora auto-sustentada. Formada em Filosofia pela PUC-SP em 1965. Geração Tropicália. Participante ativa e sobrevivente da mutação social ocorrida na vida “dessas pessoas na sala de jantar”. Primeira geração da terapia política do corpo no Brasil, desde 70. Identificou-se profundamente com a Contracultura e o Alternativo. Viveu o advento da Bioenergética, Biodinâmica e Biossíntese em Londres onde iniciou-se como terapeuta reichiana, entre 1973 e 1975, sempre em grupos independentes.


    na cidade e fora dela, a alimentação e as funções ecológicas, a simbologia além do canto entre outros fenômenos ligados a migração planetária. O pássaro não conhece fronteiras e, suas rotas de migração nos ensinam como/quando migrar diante ou não de mudanças climáticas, na ocupação transitória de restritos territórios de alimentação aos quais se amontoam durante suas rotas migratórias, como fazem por exemplo, os flamingos72. Hoje com o planeta inundado de refugiados ocupando um pequeno barco, um mísero trecho de uma praia e acuados em irrisórios acampamentos, tem muito a ver como os flamingos na partilha de ínfimos Territórios de vida.

    A novidade da cartografia dos pássaros é de que, muitos participantes nem se quer notam na paisagem sonora, o canto dos pássaros. Ou seja, para muitas pessoas ouvir o canto dos pássaros não pertence a sua realidade vivida, o que Murray Schaffer73 chamou de surdez não funcional mas, “surdez perceptiva”. Deste modo esta relação pode ser inventada, inaugurada a partir do dispositivo das cartas, uma relação que antes não se fazia presente.

    O terceiro encontro ocorreu na Mesa Redonda Devir Pássaro durante o Seminário Conexões Deleuze Máquinas e Devires, e... no Laboratório audiovisual da Faculdade de Educação da UNICAMP, em setembro. Os participantes foram convidados a escolher uma carta pelo verso, a partir dai descrevia a relação subjetiva que as imagens símbolos ou números despertavam em cada um numa roda de conversa. Ao mesmo tempo era possível ver a imagem dos referidos pássaros, ambientes e ouvir seu canto. Posteriormente, foram convidados a partir da escolha de apitos ornitológicos com som de pássaro, exercitar uma comunicação, com um dado som, em uma conversa com os sons produzidos e ouvidos. O mapa desdobrado pelas cartas com frente/verso a partir da função ambiental de cada pássaro que for escolhido motiva, toca provoca processos de subjetivação. São lidos subjetivamente, os alimentos da espécie escolhida, seu canto, o timbre que este canto apresenta e, o modo como se relacionam em seu ambiente de vida. O mapa, pode ser aberto de acordo com o que se propõem para a invenção. Outras rotas e rumos que reconfiguram o mapa em cada apresentação, deixando as subjetividades transbordarem e virem à tona.

    As cartas musicais dos pássaros74 contém 57 espécies de pássaros e aves da Região Neotropical75 e 23 complementos, que são os alimentos das espécies de aves e pássaros escolhidos. Podem ser sorteadas, escolhidas ou formar outros trajetos e relações. Inicialmente era um produto pronto, uma ferramenta didática, mas com a abertura à comunicação grupal mostrou-se como um produto em ressingularização. Um produto que se produz/reproduz de formas diferentes entre os participantes. Como dispositivo as cartas (frente/verso) remetem a construção e invenção de relações que são dadas por números, símbolos, elementos e a imagem dos pássaros Exemplo: pássaro da água (frente, fig. 1

    A) água em movimento (verso, fig. 1B) complementos que são os alimentos dos pássaros (frente, fig. 2 A) e água em movimento (verso, fig. 2 B) pássaro da água parada lago (frente, fig. 3 A ) água parada ou lago (verso, fig. 3 B). O dispositivo permite uma apropriação subjetiva ou da imagem, ou do símbolo, dos signos ou do som, ou de alguma música já conhecida, uma lembrança, uma fábula, uma história.


  4. Ver dança dos flamingos como exemplo de vida em coletividade. https://www.youtube.com/watch?v=KW8GX2n4qbY. 73 SCHAFER, M (2001). Op. cit., p. 151.

  1. O produto inicial, Cartas musicais dos pássaros está registrado como Mapa na Biblioteca Nacional desde 2006, atualmente integra a pesquisa Canto em extinção: o que ressoa no/do cotidiano escolar, PNPD CAPES, pesquisa Supervisionada por Marcos Reigota, Programa de Pós Graduação de Educação da Uniso, Sorocaba, SP.

  2. REGIÃO NEOTROPICAL – Localizada do México Tropical até o Extremo o sul da América do Sul. É caracterizada por grande diversidade climática e biótica, incluindo vegetação de florestas tropicais chuvosas até campos e desertos. O relevo, com destaque para os Andes que suportam desde florestas de montanha até tundra alpina.


Año 22, n° 79


Esta revista fue editada en formato digital y publicada en octubre de 2017, por el Fondo Editorial Serbiluz, Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela


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