Volumen 31 Nº 2 (abril - junio) 2022, pp. 181-202

ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44

The persistence of elitism in public university: analysis of student’s entry and permanence in UFRGS music bachelor degree

Pedro de Almeida Costa y Roberta Cardoso Piedras

Resumo

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa realizada para pensar e problematizar as barreiras de ingresso e permanência do curso de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), situada no sul do Brasil. O estudo objetivou analisar como os estudantes compreendem e enfrentam as barreiras de ingresso e permanência do curso, que são analisadas à luz da categoria de Habitus Conservatorial. A escolha desse quadro teórico permite identificar os mecanismos pelos quais se perpetua e naturaliza o elitismo entre estudantes, docentes e aspirantes. A pesquisa teve abordagem qualitativa e envolveu a aplicação de questionário a estudantes matriculados na graduação e a realização de seis entrevistas com sujeitos que tentaram o ingresso e/ou ingressaram no curso. O texto discute a condição contraditória da universidade pública, em que coexistem processos históricos de exclusão e políticas públicas recentes que buscam combatê-la pela inclusão

Palavras-chave: universidade pública; elitismo; desigualdade; exclusão; habitus; políticas públicas de ingresso e permanência no ensino superior

Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil. E-mail: pacosta@ea.ufrgs.br. ORCID: 0000-0002-2059-2555

Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil

E-mail: piedrasroberta@outlook.com. ORCID: 0000-0002-1371-9386

Recibido:02/08/2021 Aceptado: 16/01/2022

A persistência do elitismo na universidade pública: análise do acesso e permanência dos estudantes no curso de música da UFRGS

Abstract

This work presents results of research carried out to discuss the barriers to entry and permanence in the Music bachelor degree at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS). The research had a qualitative approach and involved the application of a questionnaire to students enrolled in graduation and the realization of six interviews with subjects who tried to enter and/or entered the course. The study aimed to analyze how students understand and face barriers to entry and permanence in the course, which are analyzed under the Conservatorial Habitus category. The choice of this theoretical framework allows us to identify the mechanisms by which elitism is perpetuated and naturalized among students, teachers and aspirants. Finally, the text discusses the contradictory condition of the public university, present in this course, in which processes of social inclusion and exclusion coexist simultaneously. The research is justified by the need to update the debate on the historical elitism of the university institution in face of recent public policies that have sought to confront it

Keywords: Public university; elitism; inequality; exclusion; habitius; entry and permanence public policies

Introdução

No Brasil, a universidade pública passou por diversas modificações ao longo de sua história. As mais recentes referem-se à democratização do ingresso e da permanência às classes populares e grupos étnicos, antes afastados do ensino superior por meio da meritocracia das seleções de ingresso que ignoravam as desigualdades educacionais do país. Concomitantemente, as instituições de ensino superior carregam marcas de um passado recente em que serviam para formação profissional da elite econômica e cultural do país. A continuidade de práticas deste passado contrapõe-se às tentativas de interrompê-lo e esta dinâmica produz disputas e desigualdades no interior das universidades públicas.

O presente texto busca analisar a compreensão que os estudantes têm das barreiras ao ingresso e à permanência do curso de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e apresentar suas estratégias para enfrentá-las. Situada no sul do Brasil, a UFRGS é considerada uma das melhores instituições federais do país1, e nas últimas décadas empregou esforços para democratizar o acesso e permanência de seus estudantes. Embora a literatura trate de ingresso e permanência de forma segregada, no caso do curso de Música da UFRGS essas problemáticas são inseparáveis, pois se relacionam com a perpetuação de práticas e modos de pensar ligados ao passado da instituição. O curso de Música parece expressar de maneira emblemática a contradição do processo de expansão do acesso e da permanência das classes populares na universidade pública: a existência simultânea de políticas que visam democratizar o ensino e processos ainda conservadores e elitistas.

A persistência desses mecanismos representam uma concepção hegemônica existente no interior dos cursos de música, e que podem ser entendidas a partir da categoria Habitus Conservatorial, proposta por Pereira (2013; 2014), e que dificulta a entrada e a permanência dos alunos na universidade. O presente trabalho aponta como os estudantes que enfrentam a permanência do curso de Música são afetados por esse habitus e lidam com as dificuldades decorrentes dele.

O texto apresenta resultados de pesquisa que procurou compreender como os estudantes do curso de música enfrentam as barreiras de ingresso e de permanência do departamento e justifica-se por questionar a manutenção de mecanismos excludentes na universidade pública. A pesquisa teve abordagem qualitativa e suas informações foram colhidas por meio de entrevistas com sujeitos que participaram das seleções de ingresso da graduação em Música da UFRGS e via aplicação de um questionário aos estudantes matriculados no curso.

As entrevistas foram realizadas com seis sujeitos que se inscreveram na chamada Prova de Habilidades Específicas (PHE) ou Teste Específico (TE) de 2014 e de 2017, sendo três aprovados e três reprovados no teste. Os estudantes foram escolhidos aleatoriamente, por sorteio, por meio das listas de inscritos nas Provas disponíveis no sítio eletrônico da UFRGS. Na época da pesquisa constavam na página da UFRGS os resultados das seleções realizadas nos anos 2014, 2017 e 2018. Com o objetivo de entrevistar sujeitos que vivenciaram o curso por mais tempo foram selecionados alunos aprovados e reprovados na PHE dos anos de 2014 e de 2017. O contato com os informantes se deu através das redes sociais, onde seis estudantes mostraram interesse na conversa presencial. As entrevistas ocorreram entre os meses de agosto e outubro de 2019. A aplicação do questionário permitiu que mais estudantes relatassem suas vivências na graduação. Por intermédio dele foram obtidos quinze relatos que apontavam dificuldades diversas no cotidiano do curso. O formulário eletrônico foi enviado por e-mail em setembro de 2019 a todos os estudantes matriculados no curso de Música, ficando aberto até novembro do mesmo ano. O Quadro 1 apresenta os estudantes por trás dos relatos citados no presente artigo, o instrumento por meio do qual se deu sua participação na pesquisa e o número por meio do qual estes são representados no trabalho.

Quadro 1

Identificação dos participantes citados

Instrumento

Informante

Resultado PHE

Resultado Vestibular

Habilitação

Situação acadêmica

(2019)

Entrevista

1

Aprovado

Aprovado

Teclado

Formado

Entrevista

2

Aprovado

Aprovado

Cordas ou sopros

Matriculado

Entrevista

3

Reprovado

-

Música Popular

Matriculado

Entrevista

4

Aprovado

Reprovado

Música Popular

Sem pretensão de tentar novamente

Entrevista

5

Reprovado

_

Música Popular

Com pretensão tentar novamente

Questionário

6

Aprovado

Aprovado

Instrumento

licenciatura

Matriculado

Questionário

7

Aprovado

Aprovado

Cordas ou sopros

Matriculado

Questionário

8

Aprovado (segunda tentativa)

Aprovado

Música Popular

Matriculado

Questionário

9

Aprovado

(segunda tentativa)

Aprovado

Música Popular

Matriculado

Fonte: elaboração própria.

Por meio da realização de entrevistas e da aplicação do questionário foram analisados relatos de sujeitos que vivenciaram tanto as barreiras de ingresso quanto as de permanência da graduação em Música. Embora não seja possível fazer generalizações de caráter estatístico, a pesquisa levantou material que embasa uma discussão qualitativa aprofundada acerca das contradições inerentes ao processo de democratização do ensino superior.

O trabalho divide-se em quatro partes principais que possibilitam a contextualização do debate da democratização do ensino superior no Brasil e na UFRGS e a análise de questões relevantes na vivência do curso de Música. O texto divide-se entre as seções: “a democratização do ensino superior no Brasil” em que é apresentado breve histórico acerca dos processos de inclusão e exclusão das classes populares no ensinos superior; “entre transformar e conservar: acesso e a permanência na UFRGS” que descreve as dinâmicas de ingresso e permanência na universidade; “ingresso e permanência no curso de Música: problemas e enfrentamentos” onde os resultados do trabalho são apresentados e discutidos. Por fim, as considerações finais retomam os resultados parciais discutidos, e propõem caminhos para a continuidade da pesquisa e eventuais desdobramentos em outras questões que surgem a partir desses mesmos resultados.

A democratização do ensino superior no Brasil

A criação do ensino superior no Brasil aconteceu com a vinda da família real em 1808 e respondeu à necessidade de conservar o status de nobreza das elites políticas e econômicas do país. Ao longo do século XX, a expansão econômica e o maior acesso à educação básica tornou mais complexa a demanda educacional aumentando o número de candidatos por vaga nas universidades. Em 1960, surge o concurso do vestibular2 com o objetivo instituir um sistema classificatório e unificado que examinava “conhecimentos comuns às diversas formas de educação do segundo grau” (BRASIL, 1968, art 21).

A competição inerente a este processo de seleção garantiu que o ensino superior continuasse como espaço privilegiado, quando não exclusivo, das classes altas e médias, uma vez que a formação necessária ao ingresso na universidade pública pressupunha condições econômicas que eram incomuns para grande parte da população. Os caros cursos pré-vestibular preparatórios e a incompatibilidade entre graduação e trabalho unia o ensino superior público às elites econômicas e aumentava as barreiras de acesso aos menos abastados.

A ampliação de vagas nas redes de ensino para ampliação do ingresso nas universidades foi uma parte das demandas mobilizadas pelos estudantes na Reforma Universitária de 1968. Entre 1967 e 1980 ampliou-se em 453% o número de matrículas realizadas nas universidades públicas (SALEM, 1982). No entanto, essa expansão pouco alterou a estrutura elitista do ensino. Conforme Martins (2009), a mudança que se afirmava no tocante ao acesso às instituições de ensino superior derivava do maior ingresso de estudantes da classe média, que emergia da expansão econômica e burocrática preconizada pelo Estado.

Na década de 1980, a agravada situação econômica do país incidiu sobre a expansão do ensino superior, diminuindo, inclusive, o número de universidades criadas e federalizadas que vinha crescendo desde a década de 1960. Paralelamente, ainda na década de 1980, a redemocratização criou um novo cenário político e social no país: o reconhecimento de vários direitos sociais, entre eles as demandas educacionais aliadas ao modelo neoliberal impulsionado internacionalmente na década seguinte3

Na década de 2000, com base nas novas diretivas educacionais e nas demandas subjacentes por igualdade e melhores condições de vida, retomou-se a expansão universitária. O debate a respeito da inclusão social nas universidades se intensificou, protagonizado pela pressão dos movimentos sociais e pela inserção de acadêmicos no governo entre 2002 e 2016. Inaugurou-se, neste período, um modelo expansionista com vistas ao rompimento do padrão arcaico de universidade elitizada. Criaram-se diversas políticas para inserção das classes populares no ensino superior. Dentre elas destacam-se, no âmbito do ensino superior público, o Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), em 2007, e a Lei de Reserva de Vagas Lei 12711/2012 e o Sistema de Seleção Unificado (SISU)4, em 2012.

O REUNI possibilitou o surgimento de 18 novas universidades federais e a ampliação do número de vagas e novos campi nas universidades já existentes. Além disso, promoveu a interiorização do ensino superior e a criação de cursos noturnos para que os trabalhadores conseguissem acessar a educação superior. O SISU permitiu que os estudantes utilizassem a prova do Enem para ingressar nas universidades. Com isso, foi possível realizar o exame em uma cidade e concorrer à vaga de outra região, atraindo e remanejando estudantes conforme a disponibilidade das vagas em diferentes regiões. O maior avanço no tocante ao acesso do ensino superior público se refere à Lei 12711/2012 que destina 50% das vagas dos processos seletivos de ingresso na universidade para estudantes egressos de escolas públicas; pretos, pardos ou indígenas; e estudantes que possuem menos do que 1,5 salários mínimos per capita.

A expansão universitária desse último período, alcançou o crescimento de 260% do número de vagas ofertadas e 176% de novos campi, no período entre 2003-2017 (ANDIFES, 2019). As diversas políticas e programas de democratização do ensino superior geraram mudanças significativas no perfil do aluno das universidades públicas federais: mais alunos de classes populares, negros e estudantes de escolas públicas. Em 2018, 64% dos graduandos eram egressos do ensino público e 70% declararam ter até 1,2 salários mínimos per capita.

O novo cenário imprimiu às universidades novos desafios. Se por um lado ingressaram sujeitos historicamente excluídos, por outro, permaneceram os privilegiados. Pela primeira vez, na trajetória do ensino superior, sujeitos de privilégio geracional dividem sala com àqueles que ficaram à margem deste direito. Desta nova condição emergem disputas, conflitos e desigualdades. As próprias estruturas universitárias conservam padrões de exclusão social, pois não se reformam à velocidade das transformações do público que passa a frequentá-las. Como resultado, na pesquisa da Andifes (2019), 52% dos alunos pensava em abandonar o curso, principalmente, por problemas financeiros, alto nível de cobrança acadêmica e dificuldade de conciliar trabalho e estudos. Ainda segundo os dados da pesquisa, mulheres, povos amarelos, pretos e indígenas encabeçam o perfil de estudantes que pensam em desistir da graduação (ANDIFES, 2019).

Zago, Paixão e Pereira (2016) apontam como motivos de evasão da Universidade Federal da Fronteira Sul a falta de identificação com o curso escolhido ou a falta de prestígio social da área, além da impossibilidade de conciliar estudo e trabalho. As autoras demonstram que a evasão acontece, pois muitos alunos migram para iniciativa privada onde existe maior oferta de cursos. Além disso, outros autores como Campos et al (2015), Pereira, Zavala e Santos (2011) e Ramos (2014) destacam, em estudos de caso, a falta de identificação com o curso somada a distância da universidade e a falta de assistência econômica como os principais motivos de evasão dos alunos. Muito embora o problema da evasão coexista com políticas de permanência.

O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), criado por meio do decreto Nº 7.234 em 2010, concede recursos aos estudantes para subsidiar moradia, alimentação, transporte, apoio pedagógico e outras formas de assistência, com objetivo de mitigar desigualdades no interior das instituições de ensino. No entanto, 27% dos estudantes que recebem assistência do programa ainda relatam cogitar o abandono do curso por problemas financeiros (ANDIFES, 2019).

Entre transformar e conservar: acesso e a permanência na UFRGS

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foi uma das primeiras universidades a implantar o sistema de cotas, por meio da Resolução 134/2007. A reserva prevista era de 30% das vagas para candidatos egressos do sistema público de ensino, sendo metade delas para pessoas autodeclaradas pretas. A partir de 2013 o ingresso na UFRGS passou a obedecer ao regime de cotas previsto na Lei 12711/2012, que além dos recortes de escola pública e autodeclaração étnica, que já existiam na sua Resolução própria, incorporou também o critério de renda per capita familiar previsto na Lei. As mudanças no número de ingressos de estudantes com esses perfis, podem ser observadas na tabela abaixo.

Tabela 1

Ingressantes por modalidade de reserva de vagas entre 2008 e 2019

Candidato

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019

Egresso do Sistema Público de Ensino

1066

1178

1282

1286

526

1183

528

614

828

794

1247

1087

Egresso do Sistema Público de Ensino, autodeclarado preto, pardo ou indígena

255

204

2019

222

345

381

315

448

589

600

373

374

Egresso do Sistema Público de Ensino com renda familiar bruta mensal igual ou inferior a 1,5 salário mínimo nacional per capita;

527

560

654

695

734

609

668

Egresso Sistema Público de Ensino com renda familiar bruta mensal igual ou inferior a 1,5 salário mínimo nacional per capita autodeclarado preto, pardo ou indígena;

280

321

462

489

548

196

243

Total

1321

1382

1501

1508

1678

1564

1724

2178

2601

2676

2425

2372

Fonte: Adaptado de UFRGS 2019.

Gráfico 1

Ingressantes reserva de vagas (2008-2019)

Gráfico

Fonte: Adaptado de UFRGS (2019)

Essa mudança no quadro discente da UFRGS exigiu modificações estruturais na universidade e fez emergir ambiguidades próprias de uma instituição que, assim como o restante da sociedade, disputa avanços e retrocessos. A exigência de resultados idênticos entre alunos de diferentes origens internaliza desigualdades sociais nos cursos de graduação. Para Anjos e Camisolão (2017), é comum que o estudante cotista ingresse em desvantagem acadêmica e cultural em comparação com sujeitos de maior renda, no entanto, essa lacuna só se torna problemática em função das métricas de esforço individual adotadas pelos docentes da universidade.

A pesquisa de Doebber (2011) trata justamente da necessidade de uma adaptação forçada do aluno cotista negro às estruturas meritocráticas da UFRGS, embora ele não tenha a mesma origem dos demais. Por meio de entrevistas, ela aponta a dificuldade dos alunos em acompanhar o alto nível de exigências, o estranhamento da linguagem acadêmica, além da falta de acolhimento do curso. Da mesma forma, a Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF) indica que as dificuldades encontradas no percurso acadêmico dos alunos da UFRGS se referem à incompatibilidade dos horários de aulas com atividades laborais, e também pelas dificuldades de comunicação e de engajamento dentro do curso escolhido (UFRGS, 2018).

As dificuldades de permanência no ensino superior incorrem, muitas vezes, em retenção ou evasão. Em linha com a literatura que trata da permanência universitária, segundo dados do Relatório de Análise Quantitativa do Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS, o tempo médio que os estudantes de renda inferior a 1,2 salários mínimos, etnicamente declarados ou não, levam para se formar é consideravelmente maior se comparados às outras modalidades de ingresso (UFRGS, 2018).

Em resposta aos dilemas da permanência universitária, os estudantes que comprovam vulnerabilidade econômica entram no Programa de Benefícios que disponibiliza recursos para materiais didáticos, transporte, creche, saúde mental, moradia e auxílio alimentação por meio de recursos do PNAES. A assistência estudantil da UFRGS conta com sete restaurantes universitários, três casas do estudante e uma colônia de férias (UFRGS, 2018). Neste quadro, insere-se também o programa de bolsas, de acesso universal, que tem como objetivo proporcionar aos alunos experiência profissional remunerada em nível técnico, administrativo e científico e, também, outras ações que objetivam a integração do estudante à universidade.

Bueno (2015) propõe a classificação das políticas de permanência da UFRGS em três tipos: compensatória, transformatória e transformativa-compensatória. As políticas compensatórias objetivam a adaptação dos estudantes ao sistema universitário por meio da superação de desvantagens culturais, escolares e/ou econômicas; a política transformativa seria o movimento de adaptação da instituição aos estudantes por meio da valorização de novos saberes e reconhecimento de diferenças; finalmente, a política transformativa-compensatória, em que se percebe movimentos de ambas as dimensões anteriores, em que ocorreria, ao mesmo tempo, a transformação da universidade e do estudante. Conforme levantamento da autora, a maior parte das políticas de permanência da UFRGS se enquadra na dimensão compensatória (52%). Portanto, são programas que, embora auxiliem os estudantes no percurso acadêmico, não incentivam mudanças estruturais na universidade e, por isso, indicam mais continuidades que transformações.

Ingresso e permanência no curso de Música da UFRGS: problemas e enfrentamentos

O curso de ensino superior em música da UFRGS diferencia-se dos demais cursos da universidade em função do ingresso e da sua estrutura curricular. Essas particularidades são compartilhadas em grande parte das graduações em Música das universidades federais e produzem dinâmicas culturais e relacionais próprias no interior dos cursos que, pensadas à luz da literatura que trata da democratização do ensino superior, tendem a produzir e reproduzir desigualdades em seu entorno.

A triagem de ingresso ao curso da UFRGS acontece por meio do Teste Específico e do Vestibular. O Teste Específico (TE) ou Prova de Habilidades Específicas (PHE) pré seleciona aqueles que poderão concorrer à prova do Vestibular sem levar em conta a reserva de vagas aprovada na Lei de Cotas, sendo que os conhecimentos cobrados tradicionalmente nas provas específicas não são ensinados nas escolas, sobretudo nas públicas5. Em geral, a aquisição destas habilidades se dá por meio de investimentos em cursos e aulas particulares ou da participação em projetos sociais ou filantrópicos.

O ingresso dos alunos no curso de Música da UFRGS fica restrito, também, à seleção considerada mais rigorosa, o concurso vestibular. A PHE impede adoção do SISU, tendo em vista a necessidade de comparecimento presencial ao Instituto de Artes. O Teste Específico do curso de Música divide-se em dois momentos. Em uma semana ocorre a aplicação do teste teórico perceptivo e, em outra, a prova prática de instrumento, sendo a média das duas o resultado da seleção. Além disso, as triagens práticas ocorrem diferenciadamente para cada modalidade inscrita e instrumento operado pelos estudantes. Somente os alunos aprovados em ambas triagens podem realizar a inscrição no vestibular. Caracteriza-se, portanto, por ser uma seleção rigorosa em que estudantes com diferentes origens sociais, culturais e étnicas concorrem em pé de igualdade, sem a garantia das políticas afirmativas existentes para a seleção geral do vestibular.

Este mecanismo, contudo, não é específico do curso de Música da UFRGS. Outras dez universidades federais6 ainda aplicam o Teste de Habilidade Específico para ingresso em cursos de Artes Visuais, Arquitetura, Dança, Design, Design de Moda, Música e Teatro. Sendo que cinco delas7 aplicam o teste específico com vagas reservadas nos critérios da Lei de Cotas.

Embora a reserva de vagas tenha sido aprovada nacionalmente para ingresso no ensino superior e várias universidades que possuem o Teste Específico incorporado-as às suas provas específicas, o departamento de Música da UFRGS a manteve sem qualquer instrumento de equivalência às desigualdades existentes na sociedade. Conforme as entrevistas, a Prova Específica responde à peculiaridade da formação em música e existe para que a graduação tenha a função de especialização, ao garantir que somente estudantes com capacidades técnicas já formadas ingressem no curso. Contudo, é possível perceber que o mantimento da PHE nestes moldes se baseia, também, em uma forte percepção meritocrática representada pela ideia de “lugar das coisas”:

A música é uma coisa que precisa de muitos anos, e no momento que tu tirar a Prova Específica tu tá tirando o lugar das coisas. É como se estivesse empilhado sabe, tu estuda um pouco tu entra na graduação e ai tu estuda mais um pouco e pode entrar em um mestrado e depois estuda mais e pode entrar em um doutorado (informante 1)

Nesse sentido, para o informante, quanto maior o esforço pessoal mais chances de alcançar a posição social almejada, o que torna o sujeito único responsável pelo seu sucesso ou fracasso pessoal, isto é, por sua aprovação ou reprovação nas barreiras de ingresso e, como veremos a seguir, de permanência no curso. Percebe-se que tanto os entrevistados aprovados quanto os reprovados no Teste Específico compartilham dessa percepção. Ambos atribuem seus resultados aos seus esforços pessoais, em especial o tempo de preparo técnico para a prova. Isso coincide com o entendimento de que a seleção aprova os alunos mais qualificados e seleciona sujeitos que já estão inseridos na música com conhecimentos formais. Abaixo, o primeiro relato é de um estudante aprovado no Teste Específico e o segundo de sujeito reprovado, ambos relacionam seus resultados nos testes com o nível de dedicação à prova e apontam o rigor da seleção.

Eu ensaiava insanamente e dava aulas [...] eu estudei pra chegar à perfeição porque não conhecia ninguém que tinha feito [a Prova Específica], então sabia que tinha que estar acima da média. (informante 4)

Uma coisa necessária é mais tempo de preparo. Três meses, considerando com toda bagagem que eu tinha, parece muito, mas talvez o foco de três meses talvez devesse ser maior. [...] Tem que ser o foco da tua vida, fazer essa prova. Requer um tempo de prática e estudo bem minucioso. (informante 5)

Embora todos os entrevistados tivessem um início muito precoce na área, os estudantes aprovados relatam uma trajetória de aulas e cursos mais contínua ao longo dos anos ou um período de dedicação exclusivo à prova, enquanto os sujeitos reprovados mencionam interrupções em seus contatos com a música, troca de instrumentos ou formas de aprendizado mais informais. Nesse caso parece que é a performance que cumpre o papel de diferenciar quem entra e quem segue a margem do curso de Música.

Contudo, embora a renda não defina o resultado do Teste Específico, sem ela pouco se consegue o tempo de dedicação exigido na seleção. A qualidade da performance musical cobrada tanto na licenciatura quanto no bacharelado de Música oculta a necessidade de condições financeiras que independem do esforço pessoal dos alunos. Isso fica ainda mais evidente quando o mesmo estudante tem que somar conhecimentos teóricos e práticos do campo da Música aos conhecimentos escolares exigidos no Vestibular. Embora o informante 4 tenha estudado com bolsa dos nove aos dezesseis em uma instituição qualificada de Música, que permitiu sua aprovação no Teste Específico, a impossibilidade financeira de preparar-se para o vestibular continuou impedindo seu ingresso ao curso.

Na verdade eu passei na específica e rodei no vestibular e eu tive a mesma sensação de revolta. Porque foi uma coisa de não ter condições nenhuma de fazer cursinho e coisas do tipo para estudar para o vestibular. Eu lembro que fiquei juntando dinheiro, vendendo mandolate na rua, dando aulas de música para comprar os livros do ENEM, porque o pai e a mãe não tinham (informante 4).

Este relato contradiz o princípio meritocrático de esforço pessoal como único vetor do sucesso profissional ou da escalada na hierarquia acadêmica “como se estivesse empilhado” (informante 1). No entanto, mesmo não tendo ingressado na graduação, este estudante também vê a Prova Específica como mantenedora “do lugar das coisas” (informante 1). O sentimento de revolta do aspirante a bacharel era direcionado à prova do vestibular, considerada uma seleção injusta frente às desigualdades educacionais existentes na sociedade, enquanto a Prova de Habilidades Específicas é legitimada por peneirar os estudantes com base nos conhecimentos musicais.

A Prova Específica eu sou muito a favor, sou até a favor de aumentar o nível de dificuldade para a Prova Específica. Só que aumentar o nível e usar somente a nota do ENEM e não o vestibular para aprovação. Aumentando o nível da prova específica tu vai pegar quem realmente está ali, só a nata, os melhores daquela área e pegando a prova do enem seria suficiente para saber se o aluno tem a capacidade (...) Eu só não concordo com a aprovação do vestibular comum, sabe eu acho injusto em relação aos outros alunos. (informante 4)

Embora ambas seleções exijam preparo anterior que, em geral, depende de certa condição econômica, os conhecimentos teóricos e práticos em música figuram como fontes legítimas de diferenciação entre quem merece ou não ingressar na universidade, entre quem é visto como nata ou ralé. Com isso, percebe-se que por trás da Prova Específica há uma silenciosa diferenciação social que pode ser denominada elitismo. Ainda que a profissionalização acadêmica em Música exija que os estudantes ingressem na universidade com conhecimentos prévios, a manutenção da Prova Específica nestes moldes baseia-se em uma concepção de ensino superior restrito, exclusivo para os melhores estudantes.

Contudo, o elitismo não se limita ao ingresso do curso. Passadas as portas do Instituto de Artes, os estudantes enfrentam o rigor das práticas pedagógicas do curso, também validadas pelos mesmos. O currículo da graduação em Música, divide-se conforme as habilitações do curso e tem prevalência de disciplinas práticas e expositivas às teóricas. Com exceção da habilitação em Música Popular, as outras possuem uma disciplina obrigatória de contato exclusivo do aluno com o professor que consiste em uma aula individual para desenvolvimento das habilidades instrumentais. Em relação à exigência da disciplina, dois entrevistados narram situações que informam a rigidez das disciplinas e poder despótico dos docentes, embora ambos os estudantes naturalizem e legitimem a posição dos professores.

Eu demorei um ano a mais para me formar justamente por isso, se tu não está bem para uma banca tu não vai (...) uma das bancas que lembro que cancelei foi a do concerto. Eu lembro que tinha aprendido dois movimentos para o concerto e ele tinha três. A minha professora não me deixaria ir para a banca sem os três movimentos. Para ela era inaceitável. No meu ver, poderia muito bem ter tocado só dois movimentos, na minha concepção sabe, poderia ter feito isso e continuado o curso. Eu acho que seria ok ter feito com um movimento aquela banca, eu tava saturado com a carga, não ia dar tempo de aprender o terceiro movimento. Mas para ela era irredutível, ou eu fazia os três movimentos ou eu não ia para a banca.Mas foi bom ter sido do jeito dela, ter ficado um ano a mais no curso foi legal... (informante 1).

As aulas (de orientação) começaram em março eu não conseguia tocar, eu falei que tava com tendinite e a professora pediu que eu tocasse alguma coisa e eu não consegui, imediatamente ela pediu que eu deixasse o instrumento de lado que eu estava reprovada nesse semestre. Ela falou que eu tinha que fazer uma reconstrução, mas que era certa a reprovação, sai desolada, sai chorando, mas é uma super professora...(informante 2)

A ênfase em Música Popular foi criada em 2012 e é resultado de um antigo debate acerca da inclusão dessa modalidade no currículo do curso. Conforme Presser (2013), desde a década de 1990 existem discussões para assunção da Música Popular nas universidades públicas, tendo em vista críticas embasadas no elitismo e no eurocentrismo dos cursos de graduação centrados na música erudita. Na UFRGS, segundo Presser (2013), os docentes envolvidos nesta disputa construíram um plano pedagógico diferenciado para esta modalidade, de característica sólida, mas abrangente e mais flexível. Um dos pilares da diferença entre o currículo da habilitação de Música Popular e das outras ênfases, para o autor, é a disciplina de prática coletiva, na qual as aulas ocorrem em grupo e os estudantes são guiados para produzirem músicas coletivamente com os diferentes instrumentos inscritos na disciplina.

No âmbito dos programas de graduação da UFRGS, estes aspectos particularizam o curso de Música e produzem ali percepções, relações e dinâmicas próprias. Pereira (2014) apresenta o conceito de “habitus conservatorial” para explicar práticas curriculares e pedagógicas específicas dos cursos de ensino superior em Música. Tal habitus, conforme o autor, tem origem na tradição conservatorial dos departamentos de música que perdura e se atualiza sustentando ideologias e práticas características destas antigas instituições de inspiração européia como uma “natureza” persistente no interior dos cursos.

O habitus incorporado e reproduzido pelos agentes que permeiam essas instituições baseia-se em características históricas do funcionamento dos conservatórios: a) o caráter seletivo do curso baseado na idéia de talento nato; b) um processo individualista de ensino, em que o conhecimento é passado em aulas particulares em uma estrutura meritocrática de progressão dos conhecimentos; c) a música erudita como conhecimento oficial e supremo; d) a primazia da performance em detrimento das matérias teóricas; e) a figura dominante e exímia do professor; f) a avaliação do desenvolvimento do aluno concentrado nas mãos do professor; g) por fim, a idéia de que só o artista com grande bagagem técnica pode licenciar os conhecimentos musicais (PEREIRA, 2014). Para o mesmo autor, as características históricas sofreram atualizações, em função das mudanças temporais da sociedade, mas não se transformaram por completo.

Cerqueira (2015) recorda que as escolas superiores de música mais antigas, e que atualmente existem nas universidades públicas brasileiras, foram originalmente criadas como conservatórios. Já Pereira (2014) sustenta a tese de que o habitus conservatorial, que é produzido e ao mesmo tempo produz o campo artístico, teria sido transposto para o campo educativo de música, a partir de suas interrelações presentes nos cursos de licenciatura em música. Assim, explica-se a homologia entre tais campos, e passa-se a ter as características históricas do conservatório nas escolas de música atuais.

Pereira (2014) aprofunda ainda a primazia da música erudita e do impacto disso no currículo e na vivência das graduações. O autor atenta que “O habitus conservatorial faz com que a música erudita figure como conhecimento universal e como parâmetro de estruturação das disciplinas e de hierarquização dos capitais culturais em disputa.”(PEREIRA, 2014, p. 95). Desse modo, a inclusão de outros gêneros musicais e conhecimentos em cursos estruturados na tradição erudita tendem a ser desvalorizados pelo quadro docente e discente.

Resta, portanto, evidente que, na sua maior parte, os cursos superiores de música, como o ora analisado em nosso trabalho, parecem reproduzir uma atualização dos conservatórios tradicionais em que suas características históricas de erudição e de alto padrão de performance permanecem quase intocadas.

A noção de habitus, tomada de empréstimo por Pereira (2014) da obra de Pierre Bourdieu, nos parece muito adequada como ferramenta explicativa da reprodução e perpetuação desse modelo de curso que é elitista e seletivo, por se ancorar na natureza conservatorial que o anima. Por isso, nos parece importante uma pausa na análise das entrevistas para apresentar breve revisão do conceito, de modo que possamos articulá-lo aos dados empíricos que serão apresentados a partir da próxima seção.

Os conceitos de campo e de habitus na obra de Pierre Bourdieu

Apresentamos a seguir uma retomada muito breve dos conceitos de campos e de habitus no pensamento de Pierre Bourdieu, a partir de algumas obras revisadas. Mantemos o itálico para algumas expressões que são marcantes nessa proposta teórica e analítica do autor. Como ele mesmo sustentava, teoria e prática são indissociáveis e sua divisão deveria ser “totalmente recusada” (Bourdieu, 1998a, p.24)

O foco da pesquisa social para Bourdieu deveria ser sempre relacional, pois os diferentes campos constituem-se como espaços de relações, e somente a apreensão das relações pode permitir a revelação das invariantes inerentes a todos os campos, dentro do caso particular de um campo específico. O objeto de pesquisa, cuja construção é ponto de partida essencial para a pesquisa social (BOURDIEU, 1998a), deve ser, portanto, esse espaço de relações, o campo e os embates que nele são percebidos. “O verdadeiro objeto da análise [...] é a construção social, ou mais precisamente, política, da realidade” (BOURDIEU, 1998b, p.215).

Campo e habitus são dois conceitos básicos e indissociáveis no pensamento de Bourdieu, ligados de forma umbilical, ou, como ele mesmo resume, ambos possuem uma cumplicidade ontológica. São conceitos, que, também eles, se definem na sua relação recíproca, nas suas exterioridades mútuas.

O campo é um espaço de relações, um mundo social particular em que podem ser observadas invariantes de uma realidade universal, que é a disputa pelo domínio do próprio campo. Ou ainda: “Todo campo é lugar de uma luta mais ou menos declarada pela definição dos princípios legítimos de divisão do campo” (BOURDIEU, 1998a, p.150). O que Bourdieu chama de agentes do campo, são atores que ocupam posições relativas neste espaço, posições que são definidas a partir de acúmulos de diferentes formas de capital. A posição de um ator só faz sentido em relação à posição dos demais atores do mesmo campo.

Pode-se descrever o campo social como um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto das suas posses (BOURDIEU, 1998a, p.135).

Bourdieu propunha a formulação de campos culturais, artísticos, políticos, acadêmicos, linguísticos, jurídicos, burocráticos, de acordo com o objeto - as relações presentes. Um campo é resultado de sua gênese histórica e social e é construído pelo conjunto de relações entre agentes distintos, e distinguidos a partir da sua posição nesse campo.

As posições dos diferentes agentes no campo, de acordo com as coordenadas dadas pelos seus acúmulos, é, por sua vez, fruto da trajetória e disposições dos agentes, o seu habitus:

O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas. Assim como as posições das quais são o produto, os habitus são diferenciados; mas também são diferenciadores. Distintos, distinguidos, eles também são operadores de distinções. [...] Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas [...] mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes (BOURDIEU, 1996a, p.21-2).

Para se entender a diferenciação existente entre as posições dos agentes no campo, é preciso que se conheça e reconheça o critério classificatório e distintivo das práticas, gostos, enfim, disposições que fundam a própria distinção. Portanto, é preciso estar no campo para entendê-lo, e, uma vez estando no campo, as classificações moldam o habitus do agente, de tal modo que, de forma recursiva, o seu próprio habitus pode influenciar no esquema classificatório.

Dessa relação é que nasce a cumplicidade ontológica entre campo e habitus. Os processos de socialização, entre os quais Bourdieu destacou a família, a Escola e, principalmente, o Estado, são construções estruturadas e estruturantes dos esquemas classificatórios. É através dos processos de socialização, entendidos como atos cognitivos, que são inculcadas as estruturas e formas de classificação e percepção da materialidade das relações do campo, de forma que a subjetividade (habitus, disposições cognitivas) passa a encontrar no mundo material (campo) estruturas objetivas correspondentes, criando um sentido e um reconhecimento da relação entre objetividade e subjetividade – campo e habitus – a partir das suas exterioridades mútuas.

A ordem simbólica apóia-se sobre a imposição, ao conjunto dos agentes, de estruturas cognitivas que devem parte de sua consistência e de sua resistência ao fato de serem, pelo menos na aparência, coerentes e sistemáticas e estarem objetivamente em consonância com as estruturas objetivas do mundo social (BOURDIEU, 1996a, p.118).

A homologia entre estruturas objetivas e subjetividade, decorre – e ao mesmo tempo constrói - um tipo de crença chamado de doxa, que permite a identificação imediata entre a concretude das relações e estruturas materiais de um campo com as disposições cognitivas assimiladas e assumidas pelos agentes:

A crença de que falo não é uma crença explícita, colocada explicitamente como tal em relação à possibilidade de uma não-crença, mas uma adesão imediata, uma submissão dóxica às injunções do mundo, obtida quando as estruturas mentais daquele a quem se dirige a injunção estão de acordo com as estruturas envolvidas na injunção que lhe é dirigida (BOURDIEU, 1996a, p.171).

Nos parece, portanto, que a noção de habitus conservatorial proposta por Pereira (2014) é bastante adequada para entender as posturas dos atores desse campo que é formado pelos cursos de música: aspirantes, estudantes e mestres. As relações entre eles/elas definem posições relativas e, com isso, o próprio campo e os habitus que passam a ser compartilhados, como forma imediata de perceber e ler o real.

Esse campo, além de marcado pelas características já listadas na seção anterior, define uma leitura comum, ou uma doxa, como nominou Bourdieu, do que é, ou deve ser, o ensino da música e a formação do músico. A inculcação dessa leitura pré-reflexiva constrói a homologia entre as subjetividades dos aspirantes e estudantes e as estruturas objetivas do campo, como as seleções e o rigor das avaliações, o que dá ensejo para leituras muito particulares que aspirantes e estudantes fazem da sua própria trajetória de busca de acesso e de permanência no curso. Os dados empíricos resultantes dessas entrevistas são retomados e discutidos na próxima seção para ilustrar nossa análise

De volta aos dados empíricos: como os estudantes lidam com as barreiras

Em função das particularidades relacionadas ao conservadorismo do curso, procurou-se compreender que dificuldades são encontradas pelos estudantes no percurso acadêmico da graduação em música e como estes estudantes as enfrentam até a diplomação. Por ser um curso diurno, os estudantes de Música da UFRGS apontam as desigualdades financeiras e a precária condição de acesso a renda como situações que dificultam sua continuidade na graduação, tendo em vista a impossibilidade de conciliar atividades remuneradas com a carga horária das aulas. Dessa situação emergem assimetrias entre estudantes que não podem abrir mão das atividades remuneradas,chegando ao limite de “ter que faltar aula pra poder trabalhar, ou escolher entre comer ou ir pra aula” (informante 6) e àqueles que têm auxílio da família para isso.

Além disso, o alto grau de cobrança, próprio do curso de Música, mas comum aos diversos departamentos da universidade, expande a distinção entre os estudantes e privilegia aqueles com melhores condições sociais e culturais no atendimento às demandas dos docentes. Ao que parece, essas condições tornam o curso de Música cada vez mais distante dos poucos sujeitos que, vindos de classes populares, conseguiram ingressar no curso. As narrativas sobre dificuldades financeiras descritas abaixo se repetem em diversas respostas do formulário eletrônico.

A dificuldade do curso de música é que espera-se alunos de família de músicos, alunos com condições financeiras, e mentais, quando na verdade chegamos sem nada disso e somos metralhados com todas as exigências. “Tem que estudar oito horas por dia” Mas como? Se eu passo 4 horas em transporte público, 7 horas trabalhando, 2 horas tendo aula e pelo menos 2 horas gastas para fazer duas refeições no dia? Eu tenho que dormir e tomar banho também! (informante 7)

Conheço muitos colegas que largaram o curso porque não conseguiriam conciliar o financeiro com o curso e outros pelo curso dar demandas tão afastadas da demanda profissional que faltava tempo para exercer as duas atividades, sem contar a questão da carga horária espalhada em diversos turnos, um problema sério de muitos cursos da universidade. (informante 8)

Os outros problemas de permanência mencionados pelos estudantes são relacionados à cultura predominante no curso, que Pereira (2014) categorizou de habitus conservatorial, e resultam das situações que decorrem das dinâmicas ali criadas. A tradicional cobrança de uma bagagem de conhecimentos anteriores à graduação e o alto grau de exigência do curso são elementos que dificultam o cotidiano dos discentes. Importa mencionar que, conforme os entrevistados, esse alto grau de exigência resulta também da cobrança interna dos estudantes, pois, conforme relatado “artista nenhum vai querer chegar numa plateia e fazer feio, a gente quer ser absolutamente brilhante” (informante 1).

Esse esforço contínuo, contudo, que se inicia na preparação para o Teste Específico de entrada e continua ao longo da graduação, gera situações de sobrecarga física e emocional mesmo em sujeitos privilegiados financeiramente. O sofrimento físico e mental dos estudantes, ocasionado pelas altas exigências da área, se torna outra dificuldade na realização das disciplinas e das avaliações práticas, em especial na habilitação de música erudita, conforme o relato abaixo sinaliza.

Eu realmente me esforcei muito para a Prova (Específica), inclusive adoeci de forma que até hoje não consegui me curar, na época foi difícil porque eu fiquei muito ruim de tendinite. Foi difícil até fazer a prova do vestibular, eu não conseguia segurar nada e eu não consegui mais tocar. Fiquei um mês enfaixada. Foi bem grave (...). Eu ingressei e tive dificuldade depois porque eu tava muito machucada e isso infelizmente é uma coisa muito natural entre as pessoas do curso porque as pessoas dizem que estão com dor. A tendinite atrapalha no sentido de não poder me esforçar melhor. Eu me sinto muito cansada, sinto uma pressão muito grande. Eu cheguei meio capenga no curso então eu tenho que dar conta de muita coisa. Vou fazer o recital de meio de curso agora e é muita coisa (...) me sinto muito insuficiente no sentido de não dar conta das coisas (informante 2)

Segundo as narrativas das entrevistas, a relação com os professores é outro fator que influencia o cotidiano da graduação. A rigidez dos professores, seu domínio exclusivo sobre os planos pedagógicos e o desrespeito com os conhecimentos dos estudantes da Música Popular integram esse quadro. Em relação ao protagonismo decisório dos professores no departamento de Música da UFRGS, Hentschke (2014) atentou ao desafio de reformar o currículo da licenciatura do curso tendo em vista tradição de ensino voltada às percepções dos docentes “onde impera o ensino sob a ótica do professor” (HENTSCHKE, 2014, p. 55). A inflexibilidade dos docentes e a desvalorização da música popular, em comparação com o prestígio da clássica, são elementos que correspondem à reprodução de uma cultura elitista originária do Conservatório de Música que afeta o percurso acadêmico dos estudantes no curso.

Minha razão atual para largar o curso é que no caso da Licenciatura, sinto um descaso para com o aluno, um curso defasado, engessado e sem possibilidade para o aluno poder trabalhar. Tive problemas seríssimos com alguns professores, e para que eu continue o curso, preciso reencontrar essas pessoas. Então, para preservar o restante de saúde que eu tenho, resolvi trancar o curso e estou tentando transferência interna. (informante 6)

Uma dificuldade era a diferença de vivência de alguns professores com a de músico popular. Sentia muito esse abismo de vivência e convicção. Me sentia “tolhido” muitas vezes em relação a meus conhecimentos anteriores, alguns colegas sentiam a mesma coisa. (informante 9)

Desse modo, a continuidade de práticas e orientações próprias dos conservatórios de música nos cursos de graduação caracteriza determinado conservadorismo que imprime desafios no cotidiano dos estudantes. A expansão do acesso ao ensino superior, mesmo limitado no curso de Música da UFRGS pela ausência de equidade no Teste Específico, possibilitou que sujeitos de origens diferentes ingressassem em cursos de graduação. No entanto, estes sujeitos, ao entrarem em um curso que não se atualiza com a rapidez das mudanças sociais, deparam-se com barreiras à sua permanência, relacionadas principalmente à incompatibilidade entre a carga horária do curso e a realização de atividades remuneradas. Além disso, as pressões do currículo do curso, próprias da profissão de músico (principalmente erudito), afetam física e emocionalmente os estudantes, independentemente da sua condição financeira, embora seja ela que permita a continuidade ou não do estudante neste curso. No mesmo sentido, a intransigência de alguns professores e seu domínio sobre o currículo e as práticas pedagógicas fere as relações entre alguns docentes e discentes.

A recente inclusão da ênfase em Música Popular no curso aponta uma disputa pela mudança na estrutura e no papel do curso, à medida que abre as portas da universidade a sujeitos com diferentes conhecimentos e habilidades que são espraiadas com mais facilidade na sociedade. É o próprio campo em disputa. Contudo, essa transformação sofre as reações conservadoras de uma construção curricular e pedagógica consolidada ao longo dos anos na primazia da música clássica. Em função destes elementos, é possível concluir pela permanência de barreiras elitistas ao ingresso e à permanência no curso de Música da UFRGS.

Contudo, é preciso reconhecer que, a manutenção destas práticas não resulta unicamente do conservadorismo do curso. A profissionalização em música tem particularidades que demandam uma graduação diferenciada. Conforme Presser (2013), a profissão de músico é ambígua tendo em vista a necessidade de vivência para assunção dela, e não de conhecimentos teóricos. Desse modo, a graduação em Música surge como forma de aprofundar as técnicas obtidas pelos profissionais ao longo de suas vidas (PRESSER, 2013). Tal concepção justifica os processos seletivos e a ênfase do curso na performance em detrimento da teoria. Cerqueira (2013), considera o ensino individual das disciplinas obrigatórias dos cursos imprescindível à performance musical e atribui a excelência do curso à restrição do seu acesso. Para o autor, as políticas públicas que visam democratizar o ensino superior, em especial o REUNI e o SISU, violentam a autonomia universitária e não levam em conta as especificidades da área de Música, essenciais à excelência do ensino e do conhecimento ali produzido.

O desafio que se coloca em relação ao curso de Música da UFRGS refere-se à necessidade de tornar o acesso e a permanência do curso mais igual e inclusiva, ao mesmo tempo em que são respeitadas suas características essenciais, ainda que isso carregue o risco de que eventuais mudanças implementadas possam ter caráter meramente periférico e cosmético, como alerta Pereira (2014).

Ao pensar as estratégias usadas pelos estudantes no enfrentamento das dificuldades da graduação tem-se um horizonte de possibilidades para essa questão. Os estudantes indicam os espaços de convívio do curso como formas de atenuar as angústias que percorrem a graduação e estes podem ser compreendidos como respostas aos problemas do curso, pois são potências para enfrentamento das dificuldades existentes na graduação.

Conforme os informantes, a existência de uma cultura relacional não competitiva propicia momentos de troca entre os estudantes que os auxilia no enfrentamento das exigências da graduação. Suas relações de amizade e os momentos de compartilhamento no interior do curso suavizam as tensões cotidianas da graduação. Atenta-se, em especial, ao papel da disciplina de Prática Coletiva, da ênfase de Música Popular, para o terceiro entrevistado que, por meio dela, pôde criar vínculos com outros alunos e superar a falta de experiência com a música, tanto cobrada no curso.

No primeiro semestre, quando tu entra naturalmente acha tudo incrível, mas uma cadeira que me ajudou (relatou ser tímido antes), foi a cadeira de prática coletiva que é só pra música popular. Que daí tu pega todos os alunos de música popular com uns 6 professores mais ou menos, e formam meio que uma banda assim, tocam juntos com orientação de um professor e a professora era muito boa. Isso foi uma coisa muito boa, porque como eu não tinha nenhuma experiência em tocar com banda assim, me ajudou muito (informante 3).

Além disso, aparecem diversas vezes nas entrevistas e no questionário a importância das bolsas oferecidas pela universidade para abrandar a escassez da renda. Percebe-se a importância desta política de permanência como resposta às dificuldades financeiras dos alunos, embora não as resolva de vez, já que o valor ofertado é baixo. Isso faz com que os estudantes também dependam de auxílio financeiro de familiares, sendo esta uma segunda forma de enfrentamento das dificuldades financeiras para continuar a graduação, mencionadas várias vezes também. Além disso, as bolsas têm papel fundamental na integração do estudante à universidade. No relato abaixo, o estudante só se sentiu pertencente à instituição e feliz com as habilidades desenvolvidas na graduação com a experiência da bolsa em um projeto que respondia às suas expectativas de aprendizado.

Eu acho que por não ter uma tradição de leituras assim eu acho que perde, tipo, eu entrei para pesquisa, e pra mim eu tava meio tipo “o que eu estou fazendo?” tava meio perdido, mas como era primeiro semestre não dei muita bola, acho que era normal. Depois consegui me achar, consegui bolsa. A professora que eu peguei (como orientadora da bolsa), por exemplo, me dá leituras pra casa. (informante 3)

Estes elementos apontam a relevância da discussão acerca das dificuldades de permanência de um curso com características pedagógicas e curriculares peculiares e pouco exploradas na literatura. De modo geral, a criação de políticas de permanência planejadas dentro da universidade e desenvolvidas junto aos estudantes do curso parece fundamental para que as dificuldades de permanência específicas do curso sejam atenuadas.

As estratégias de enfrentamento operacionalizadas pelos estudantes também são influenciadas pelo campo e, portanto, perpetuam sua estrutura de relações e de poder. Da mesma forma que Bueno (2015) classificou as ações que tentavam mitigar as desigualdades na universidade em dimensões compensatória, transformatória e transformativa-compensatória e identificou a maioria das políticas de permanência da UFRGS de compensatórias, as estratégias mobilizadas pelos alunos baseiam-se na adaptação à dinâmica da universidade e na compensação das mazelas, sem, contudo, provocar as necessárias transformações na estrutura que as causa.

A existência de uma elitização reproduzida por docentes e discentes expressa a continuidade de uma lógica que vê na universidade pública um espaço para diferenciação social e não para inclusão. Esse raciocínio define uma contradição com as políticas de democratização do ensino superior criando tensões no interior da universidade pública entre aqueles que insistem em conservá-la e aqueles que visam transformá-la.

Esta tensão entre manter práticas do passado e mudá-las frente o presente está expressa na ausência de métodos equitativos no Teste Específico de ingresso mesmo quando este já foi retirado nos outros cursos do Instituto de Artes; na relutância dos professores e alunos em valorizar a recente Habilitação em Música Popular construída para ampliação da abordagem musical do curso; na continuidade de uma estrutura curricular pulverizada em diferentes cargas horárias quando parte dos discentes necessitam realizar atividades remuneradas e, de modo geral, na difícil adequação dos bacharelados em Música às políticas de expansão do ensino superior. As desigualdades que resultam destas contradições levam alguns estudantes a situações limite de fragilidade psíquica e material que, atenuados apenas parcialmente pelas políticas de permanência, comprometem os ideais de democratização e inclusão social das recentes políticas de expansão da universidade pública.

As demandas de inclusão social e democratização do ensino superior, defendidas por movimentos sociais e assumidas pela gestão pública nos governos anteriores, circundou diversos cursos de graduação nas últimas décadas impulsionando mudanças no perfil de alunos que ingressam e se formam nas instituições de ensino superior. Na graduação, a permanência de estudantes oriundos de diferentes origens socioculturais deveu-se em grande medida às políticas de assistência estudantil, mas também à mudanças em práticas pedagógicas e curriculares no interior dos cursos.

O ideal de uma “universidade para todos” que mobilizou discursos e mudanças no ensino superior parece ser atravessado no curso de Música da UFRGS pela essência conservatorial do curso que conserva o pensamento, atualmente respaldado pelo contexto político e social, de uma “universidade para poucos”. Embora o curso analisado tenha incluído a modalidade de Música Popular, tendo em vista a demanda de democratização e inclusão de diferentes saberes no ensino superior, essas parecem ser soluções marginais que, influenciadas pelo contexto, apenas orbitam o âmago conservatorial do curso. A continuidade de práticas e pensamentos nascidos há quase um século denuncia a ligação do curso com sua origem de Conservatório que vê, não só a Música, mas o Ensino Superior como forma de diferenciação social.

Considerações finais

O trabalho procurou apresentar a compreensão que os estudantes tinham das barreiras de ingresso e permanência do curso de Música da UFRGS e as táticas de enfrentamento mobilizadas por eles. Para alcance deste objetivo, foram utilizadas seis entrevistas com alunos que realizaram o Teste Específico em 2014 e 2017 e ainda quinze respostas descritivas de questionário enviado aos alunos matriculados na graduação em Música.

A partir deste desenho metodológico percebeu-se que as barreiras de acesso e permanência do departamento relacionavam-se à manutenção de práticas ligadas ao passado dos Conservatórios de Música, centradas na performance, que aprofundam desigualdades dentro do curso. A manutenção do Teste Específico sem qualquer mecanismo de equivalência às desigualdades sociais têm papel de reservar a graduação em Música a uma elite intelectual que detém amplos conhecimentos musicais e escolares. A prática tem, para os entrevistados, maior legitimidade que o concurso do vestibular, já que os conhecimentos musicais figuram como genuínos métodos de diferenciação entre quem pode ou não ingressar no ensino superior. Contudo, mesmo estudantes aprovados nas várias triagens para acesso ao curso, enfrentam o rigor do currículo e a rigidez de práticas pedagógicas existentes para extrair dos melhores alunos, a melhor performance.

Os problemas enfrentados pelos alunos no cotidiano do curso referem-se a angústia física e emocional proveniente do alto grau de cobrança e rigidez dos docentes e dos próprios alunos consigo mesmos, além da desvalorização de conhecimentos distintos dos da música clássica. Além disso, foi recorrente nas informações coletadas um problema comum na permanência em cursos diurnos que é a incompatibilidade entre a carga horária das aulas e atividades externas à universidade. Para enfrentar essas situações, constatou-se a importância da política de permanência de bolsas da universidade, dos espaços de convívio e compartilhamento do curso e do apoio financeiro de familiares para permanência na graduação.

Essas são estratégias que pouco mitigam as dificuldades e nada modificam o ideal elitista do currículo. Conforme apontado, o curso representa a ambivalência das instituições públicas de educação superior que, permeáveis às contradições existentes na sociedade, internalizam processos de inclusão e exclusão social mediante suas disputas internas entre transformações e práticas conservadoras.

Finalmente, parece que a discussão central é sobre a concepção de curso de Música que se quer, pois o tipo de formação que o curso analisado oferece demanda, de fato, não só esse tipo de trajetória anterior de conhecimento, medida pelo teste de habilidade específica, como também o grau de esforço e dedicação para conseguir finalizá-lo.

Para um processo de transformação mais duradoura e efetiva na remoção das barreiras ao ingresso e permanência das classes populares na educação superior pública, parece entrar em jogo a própria concepção de universidade e de sua função formativa nas mais diferentes áreas das ciências, artes e humanidades, suplantando a cultura do que Cunha (2007) chama de bacharelismo, em que a obtenção do título universitário se torna um passaporte para a ocupação de um espaço social privilegiado do ponto de vista simbólico, econômico e político, e que, usualmente, é monopolizado pelos representantes dos mesmos estratos sociais.

A partir da pesquisa, percebe-se a importância em aprofundar a compreensão das práticas curriculares e pedagógicas do curso para profissionalização em música para construção de uma análise diferenciada acerca das situações ali presentes. Além disso, em pesquisas futuras sobre o tema, seria primordial levantar dados quantitativos, com o objetivo de confirmar ou não estudos qualitativos como o nosso, para então estimular reflexões acerca do padrão elitista do ensino superior e tensionar mudanças sociais na universidade. Temos ainda um longo caminho pela frente, e pensamos que a contribuição de pesquisas como esta podem ajudar nas necessárias reflexões para esse processo de transformação.

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UFRGS. (2018) Comissão de Acompanhamento de Políticas Afirmativas (CAF)/UFRGS. Relatório 2018 Análise Qualitativa no Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas. Porto Alegre: UFRGS.


1 UFRGS divide o 2º lugar entre as melhores universidades brasileiras no Ranking Shanghai. Sul 21. 17 de agosto de 2021. Educação. Disponível em < >. Acesso em 20 de abril de 2022.

2 O concurso vestibular consiste em um conjunto de provas dos conteúdos estudados no ensino médio, nível educacional anterior à educação superior. Cada universidade elabora suas próprias provas e usa os escores ou notas obtidas pelos estudantes para classificar os candidatos nas vagas oferecidas em cada curso.

3 Inicia-se grande expansão do setor privado em detrimento do setor público por meio de políticas de incentivos fiscais. A criação do FIES em 2001, ainda no governo FHC, e mais tarde o PROUNI com Lula fortaleceu as instituições de ensino superior privadas. De acordo com o censo da educação superior de 2016, as IES privadas concentram 75,3% do total de matrículas (INEP, 2017).

4 O SISU passou a ser uma alternativa para as Instituições de Ensino Superior no Brasil selecionarem candidatos para suas vagas, em substituição à necessidade de elaborarem seu próprio concurso vestibular. É um sistema de seleção baseado em uma prova nacional em que os estudantes se inscrevem previamente e cujo escore ou resultado é calculado pelo Ministério da Educação.

5 A lei n° 11.769 de 2008 regulamenta aulas de músicas nas escolas, mas raras têm condições de implementá-la, como demonstra a reportagem de Vanessa Carajado, “Lei que torna o ensino de música obrigatório na rede pública completa dez anos, mas não é implementada” disponível em<https://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/2018/10/13/lei-que-torna-o-ensino-de-musica-obrigatorio-na-rede-publica-completa-dez-anos-mas-nao-e-implementada.ghtml>. Acesso em 22 de fevereiro de 2019.

6 Conforme pesquisa realizada nas páginas das universidades federais, aplicam a PHE para os seguintes cursos: URFN para Dança, Bacharelado em Música, Licenciatura em Música e Licenciatura em Teatro; a UFF para Arquitetura e Urbanismo; UFBA para Artes Plásticas, Design, Licenciatura em Desenho e Plástica, Superior de Decoração, Direção Teatral, Interpretação Teatral, Licenciatura em Teatro, Canto, Composição e Regência, Instrumento, Licenciatura em Música e Música Popular; UFMG para Artes Visuais, Cinema de Animação e Artes Digitais, Dança licenciatura, Design de Moda, Música bacharelado, Música licenciatura e Teatro; UFOP para artes cênicas e música; a UFU para Música; UFRJ para Arquitetura e Urbanismo, Composição de Interior, Composição Paisagística, Comunicação Visual Design, Dança, Desenho Industrial, Bacharelado em Música e Licenciatura em Música.

7 As Universidades Federais do Rio Grande do Norte (UFRN), de Minas Gerais (UFMG), do Rio de Janeiro (UFRJ), a Rural do Rio de Janeiro (UFRR) e a Federal do Fluminense (UFF)