COVID-19 e a subjetividade no contexto das mudanças ambientais

Silvia Miguel de Paula Peres, Ana Maria Heuminski de Avila y

Sônia Regina da Cal Seixas

Resumo

O artigo trata da reflexão a respeito da linearidade das relações causais que envolvem as mudanças ambientais –aqui identificadas como as transformações dos sistemas naturais, climáticos e socioculturais decorrentes do modo de vida contemporâneo- e seus impactos na subjetividade (humana) –dimensão dos sentimentos e sensações relacionados a estas mudanças. Para desenvolver o presente trabalho, foram realizados debates teórico conceituais com o objetivo de situar a pandemia covid 19 como desastre associado ao modo de vida contemporâneo presente no processo de urbanização das cidades. Quanto mais a vida diária é reconstituída na confluência entre o local e o global, em momentos de forte mudança ambiental -tais como o cenário distópico representado pelo advento COVID 19- mais os indivíduos sofrem, sentem medos e são desafiados a elaborar estratégias para sua própria sobrevivência. Desse modo, mais do que consequência ao desastre da pandemia, a subjetividade passa a ser conceituada como potencialidade transformadora -continuum dinâmico- ampliando seu alcance como perspectiva de ação diante do desastre. A incerteza em relação ao futuro pode suscitar processos de constituição de novas realidades, por meio da abertura de espaços políticos que favoreçam a criatividade, vista como estratégia de enfrentamento. Desse modo, a retomada de caminhos adaptativos frente às transformações em curso pode ser possível, se a “poética da existência” encontrar seu espaço de emergência e atuação.

Palavras chave: Modo de Vida Contemporâneo; Mudanças Ambientais e Climáticas; Riscos e Vulnerabilidade; Desastre; Relações de Causalidade, Subjetividade.

Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, Brasil. E-mail: silviamiguelperes@gmail.com. ORCID: 0000-0002-4308-5206

Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, Brasil. E-mail: avila@cpa.unicamp.br. ORCID: 0000-0002-6801-8528

Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, Brasil. E-mail: srcal@unicamp.br. ORCID: 0000-0002-5117-7194

Recibido: 22/01/2021 Aceptado: 09/03/2021

COVID-19 and subjectivity in the context of environmental changes

Abstract

The article presents a reflection regarding the linearity of causal relationships that involve environmental changes and their impact on (human) subjectivity. The environmental changes are here identified as transformations of natural, climatic, and socio-cultural systems resulting from contemporary lifestyle, and the impacts as the dimension of feelings and sensations related to these changes. The authors carried out conceptual theoretical debates to situate the covid-19 pandemic as a disaster associated with the contemporary way of life present in the urbanization process of cities. In moments of intense environmental change, such as the dystopian scenario represented by the advent of COVID-19, the more daily life is reconstituted at the confluence between the local and the global, the more individuals suffer, develop fears, and are challenged to develop survival strategies. Thus, subjectivity is more than a consequence of the pandemic disaster, it is conceptualized as a transformative potential – a dynamic continuum – expanding its scope as a perspective for action facing disaster. Future uncertainties may trigger processes to constitute new realities through political opportunities that favor creativity, seen as a coping strategy. The resumption of adaptive paths in the face of ongoing transformations may be possible, whether the “poetics of existence” finds its emergency and performance space.

Keywords: Contemporary Lifestyle; Environmental and Climate Change; Risks and Vulnerability; Disaster; Causality Relations, Subjectivity.

Introdução

O artigo trata da reflexão desenvolvida pelo Laboratório de Estudos: Mudanças Ambientais, Qualidade de Vida e Subjetividade (LEMAS) do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Brasil, a respeito da linearidade das relações causais que envolvem as mudanças ambientais –aqui identificadas como as transformações dos sistemas naturais, climáticos e socioculturais decorrentes do modo de vida contemporâneo- e seus impactos na subjetividade (humana) –dimensão dos sentimentos e sensações relacionados a estas mudanças.

O Laboratório LEMAS se constitui como um espaço de interação e consolidação de pesquisas científico-acadêmicas dedicadas a temáticas ligadas às mudanças ambientais, qualidade de vida e subjetividade. Criado no ano 2000, ele conta hoje com a atuação de pesquisadores e colaboradores nacionais e internacionais, pós-doutores, alunos de graduação e pós-graduação, produzindo pesquisas financiadas por instituições consolidadas no Brasil, tais como FAPESP1 e CNPq2.

Em meio ao contexto da pandemia Covid 19, e sem saber quais desdobramentos político sanitários serão vivenciados nos próximos meses do ano no Brasil, a proposta deste artigo é refletir acerca do lugar da subjetividade no debate sobre mudanças ambientais e climáticas, questionando sua posição enquanto linha de chegada e potencialidade (crítica e política) no interior das relações de causalidade. Conceituando a pandemia como desastre, provedor de profundas inseguranças, angústias e medos em relação ao futuro, o trabalho apresenta-se como importante ferramenta cognitiva que possibilita compreender como prosseguir ou lidar com essa realidade catastrófica, com semblante de final dos tempos.

A presente reflexão é decorrente de debates estabelecidos pelo grupo antes da pandemia, e que, no entanto, adentraram ao contexto distópico atual, justamente pelo fato de a experiência da tragédia covid 19 estar sendo vivenciada por todos os membros do grupo, alcançando dimensões globais. Isso significa dizer que a subjetividade está sendo sentida singular e coletivamente (em âmbito individual, municipal, estadual, nacional e internacional), manifestando-se em diferentes âmbitos e narrativas.

Diante dessa prerrogativa, o artigo apresenta possibilidades conceituais e epistemológicas para pensar a realidade da pandemia a partir do diálogo teórico conceitual entre as ciências naturais e as ciências humanas, por abarcarem perspectivas em que o espectro da análise biofísica é contemplado pelo mundo da subjetividade, que o recheia de elementos não mensuráveis e desconfortáveis, mas que também possibilitam avançar sobre a crítica política em relação ao modo de vida contemporâneo, homogeneizador de comportamentos.

Na dinâmica da comunicação estabelecida entre os pesquisadores, construiu-se o presente debate, como resultado dos encontros mensais (presenciais e remotos) realizados pelo LEMAS - NEPAM – UNICAMP, em que autores e abordagens foram discutidos com o intuito de enriquecer a análise sobre a temática proposta.

O modo de vida contemporâneo, produção de riscos e mudanças ambientais e climáticas

O modo de vida contemporâneo tem sido alvo de muitos questionamentos e indagações, sobretudo no que se refere a sua responsabilidade sobre o conjunto de novos riscos e ameaças que circundam os ambientes urbanos em crescente expansão.

Nesse debate, a cidade tem sido considerada como lócus propulsor de inter-relações entre o ser humano e a natureza em diferentes âmbitos, ligados a um determinado modus operandi propiciado pela vida urbana, que por sua vez ocasiona:

[...] um complexo quadro de informações denominado conceitualmente por mudanças ambientais e alterações climáticas, que ganham concretude na vida cotidiana dos cidadãos em espaços urbanos, com intensidade não observada anteriormente, trazendo do ponto de vista teórico a necessidade de indagar-se sobre um conjunto de novos riscos e ameaças que podem agravar as situações adversas já existentes nos centros urbanos (Di Giulio & Vasconcellos, 2014: 41).

Observa-se que a necessidade de se olhar para os centros urbanos, especificamente as cidades e o respectivo modo de vida constituído, elabora uma determinada forma de existência material que, por sua vez, atua como agente produtora de um “conjunto de novos riscos e ameaças” à existência humana.

Di Giulio & Vasconcellos (2014) salientam que esses fatores estão associados ao desenvolvimento das cidades, impulsionado por processos de urbanização que culminam na necessidade de organização das pessoas e das suas vidas no ambiente. As autoras acrescentam que o crescimento populacional, quando associado à alta concentração de pessoas em determinados espaços, leva a consequências tais como o aumento das demandas sociais por melhores condições de vida, estabelecimento de instituições de saúde, ensino, trabalho, abastecimento de água, alimentos, transporte, segurança, soluções para o descarte dos resíduos gerados, ou seja, para que o modo de vida contemporâneo se realize no nível local, há que se criar diretrizes políticas de planejamento e condução das diferentes formas de uso e ocupação do espaço (Di Giulio & Vasconcellos, 2014).

Esse conglomerado de demandas que dizem respeito a sustentação da vida urbana, gerenciadas pelo âmbito político, são necessárias para que a vida material se produza e se reproduza tanto dentro da cidade quanto fora dela, levantando questionamentos a respeito da capacidade biofísica do ambiente para sustentar os tais modus operandis produzidos (Di Giulio & Vasconcellos, 2014, Guimarães & Fontoura, 2010).

Nesse aspecto, pesquisas apontam que a urbanização vem ocasionando alterações no balanço de radiação atmosférica, sendo que o balanço de energia urbano tem formado um microclima que ocasiona aumento da temperatura da superfície do solo (Mohan et al., 2013; Oke, 1987). Com a redução das superfícies evaporativas, uma maior porção da energia proveniente do sol é convertida em calor sensível, e menos em calor latente (Oke, 1982).

Do mesmo modo, as intensas aglomerações urbanas estão sendo responsabilizadas por determinados problemas ambientais, dentre eles, a baixa dispersão de poluentes e o aumento do estresse provocado pelo calor, que podem aumentar o desconforto humano e levar ao aumento da mortalidade, devido as doenças relacionadas ao calor. Acrescenta-se que a necessidade de refrigeração dos ambientes urbanos aumenta o consumo de energia, o que pode agravar as mudanças climáticas (Oke,1982).

Grimarães & Fontoura (2010) destacam que o modo de vida contemporâneo expõe a “tendência a utilizar quantidades cada vez maiores de energia”, pois “a cada novo incremento tecnológico, se usa mais energia do que em etapas anteriores” (Guimarães & Fontoura, 2010: 74). O aumento na utilização de energía estaria atrelado a própria questão do desenvolvimento das cidades, o que segundo os autores, leva a sofisticar “as redes de comunicação existentes para dar sustento à expansão da ocupação humana do planeta” (Guimarães & Fontoura, 2010: 74) agravando os impactos ambientais e climáticos, alcançando dimensões globais.

Em termos conceituais, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sua denominação em inglês Intergovernmental Panel on Climate Change), órgão criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM) em ١٩٨٨, definiu as mudanças climáticas como alterações no estado do clima, que podem ser identificadas, por exemplo, por meio de testes estatísticos, como mudanças na média e/ou na variabilidade das suas propriedades e que persistem por um período prolongado de tempo, tipicamente décadas ou mais. A mudança climática pode estar relacionada a processos naturais, forças externas, como a mudanças antrópicas persistentes na composição da atmosfera ou devido a alterações no uso do solo (IPCC, 2007).

Visto como resultado das interações entre a biosfera, a litosfera, a hidrosfera e a atmosfera, o sistema climático global é compreendido como estado médio da atmosfera, o que inclui a descrição estatística de quantidades relevantes de mudanças do tempo meteorológico, num período de tempo que abarca desde meses, a milhões de anos. O período considerado como referência para as análises é de 30 anos, definido pela Organização Mundial de Meteorologia (OMM) e pelo Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC, 2007, 2013).

As mudanças climáticas também podem ser identificadas enquanto eventos usuais e extremos. Barbosa (2008) define eventos usuais como episódios registrados com maior frequência, possibilitando uma melhor absorção pelas sociedades e um planejamento de adaptação ao seu ritmo natural.

Segundo o Relatório Especial (IPCC, 2012), um evento extremo é definido como variável de condição meteorológica ou clima acima ou abaixo de um valor limite, perto das extremidades (‘caudas’), superiores ou inferiores à faixa de valores da variável observados, como por exemplo chuvas intensas, secas, inundação, granizo, nevasca, geada entre outros.

Já as mudanças ambientais são conceituadas como uma variedade de fatores que alteram o ambiente natural de determinado local, região ou planeta. Os agentes das mudanças ambientais incluem fatores como alterações na temperatura atmosférica, fatores geológicos, como erosão, intemperismo e tectonismo, e fatores biológicos, como a introdução de espécies invasoras e a retirada de florestas (Convey e Peck, 2019; Lewis et al, 2015).

Tanto as mudanças climáticas como as mudanças ambientais são vistas como consequências da vida no planeta, ocasionadas, principalmente, pela ação humana no período moderno (Venter el al, 2016; Convey e Peck, 2019). Conceitualmente, diferem no seguinte aspecto: a mudança climática envolve principalmente processos atmosféricos, enquanto a mudança ambiental abarca todos os processos que compõem a alteração do ambiente. As mudanças climáticas também podem ser consideradas como subcategoria das mudanças ambientais, inseridas no interior de um processo maior e mais complexo, em virtude de abarcar maior quantidade de dimensões para a sua compreensão (Mannion, 1997).

Algunas mudanças ambientais já foram consideradas como mitigadas, ou seja, tiveram seu impacto reduzido, como por exemplo, a destruição da camada de ozônio. Por outro lado, a mudança climática antropogênica, isto é, aquela ocasionada pela emissão de gases de efeito estufa, constitui-se como problema difícil de ser controlado. Em ambos os casos, discussões têm apontado o ser humano como causa significativa dessas alterações que ocorreram nos últimos 100 a 200 anos, considerando-o como principal força motriz desde o surgimento do Homo sapiens comportamentalmente moderno, há cerca de 100.000 anos atrás. As pessoas estão sendo responsabilizadas por ocasionar as mudanças no ambiente global, que impactam as modificações no clima, na produtividade do solo, nos oceanos, nos recursos hídricos, na química da atmosfera e em sistemas ecológicos, alterando a capacidade da Terra para sustentar a vida (Courvey e Peck, 2019; Gutt et al, 2020).

Nessa perspectiva, alguns problemas ambientais assumem dimensões de preocupação internacional, quando abarcam todo o planeta:

São processos locais, como por exemplo, a queima de combustíveis fósseis, que produzem dinâmicas globais como o efeito estufa e as mudanças climáticas que afetam o mundo inteiro, incluido a imensa maioria que, mesmo sem contribuir para o aquecimento global, sofrem os impactos mais significativos, os países insulares (Guimarães & Fontoura, 2010: 79).

A literatura científica considera que, desse modo, grande parte das mudanças ambientais obedecem a uma ordem causal linear, situada no interior das relações estabelecidas pelo modo de vida contemporâneo, e que mesmo os grupos sociais que não contribuem diretamente ao processo de destruição do ambiente, arcam com as consequências desses impactos. Em resumo:

[…] são as ações humanas, individuais e coletivas, que levaram à insustentabilidade atual, seja diretamente, por decisões de produção e consumo, seja indiretamente, por meio das instituições igualmente fruto de ações e decisões humanas, individuais e coletivas. Em resumo, deve-se assumir que as mudanças ambientais globais não são impulsionadas por instituições, mas por seres humanos (Guimarães & Fontoura, 2010: 80).

O destaque à responsabilidade humana pela condução de um modo de vida insustentável do ponto de vista ambiental aponta para “processos socioeconômicos e culturais que, conjuntamente, têm imposto pesadas demandas sobre os recursos naturais, sobre os ciclos da biosfera e o meio físico em geral” (Confalonieri et al, 2002: 140).

Do mesmo modo, a crescente busca pelo desenvolvimento econômico associada aos mecanismos de produção e reprodução da vida material tem ocasionado riscos e desastres (Confalonieri et al, 2002; Di Giulio & Vasconcellos, 2014, Marandola et al, 2013) que do ponto de vista ambiental significam “esgotamento de recursos e destruição de alguma coisa do meio ambiente” (Cavalcanti, 2012: 36).

Cavalcanti (2012) explica que quando o desenvolvimento de uma sociedade encontra-se diretamente relacionado ao modelo econômico estruturado para o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), as relações socioambientais são conduzidas a privilegiar o progresso material de maneira ilimitada, ou seja, alimentando o processo produtivo e tecnológico sem levar em consideração os impactos sobre os recursos naturais: “É como se nada, nenhuma ação humana alterasse a realidade biofísica do ecossistema em que se encontra inserido o sistema econômico” (Cavalcanti, 2012: 36).

Segundo Guimarães & Fontoura:

[...] a evolução do padrão de ocupação do planeta, que teve lugar a partir da Revolução Agrícola, levou a uma verdadeira revolução nos padrões de produção e consumo. Esse mesmo padrão que permitiu o surgimento da civilização foi tornando os seres humanos cada vez menos sintonizados com suas necessidades biológicas e mais alienados de si mesmos e dos seus parceiros na natureza. Soma-se a isto, a necessidade de utilização de quantidades crescentes de recursos de poder para garantir a incorporação (e destruição) de ambientes extra- nacionais e, desta forma, satisfazer padrões progressivamente mais insustentáveis de consumo (Guimarães & Fontoura, 2010: 76).

O excerto alerta, em linhas gerais, para o aumento inconsequente dos processos de produção e consumo que garantem o desenvolvimento da civilização contemporânea, sem a preocupação com a sustentabilidade dos recursos naturais utilizados. Essa situação tem aumentado o potencial de riscos ambientais em grandes escalas, “que se expressam pela falta de ajuste e aderência da produção do espaço urbano aos sistemas naturais, desde o sítio até ritmos regionais de chuvas, ventos e biodiversidade” (Marandola et al, 2013: 36).

Observa-se nesse caso, que as cidades não foram construídas para a prevenção ou resiliência em relação aos desastres socioambientais, em virtude de produzirem espaços demarcados pela pobreza e desigualdade social, que expõem os segmentos socioeconômicos menos favorecidos a situações de risco e vulnerabilidade (Marandola et al, 2013).

Seixas et al, salienta que:

As mudanças ambientais globais envolvem alterações no clima e nos sistemas ecológicos, incidem nos ciclos naturais, determinando prejuízos à infraestrutura, às atividades econômicas, sociais e à saúde humana, afetando, principalmente, as populações mais vulneráveis (Seixas et al, 2014: 51).

Constata-se que áreas urbanas de maior concentração populacional, por exemplo, os ambientes mais vulneráveis são aqueles ocupados pelas camadas mais pobres da sociedade, configurando a exclusão e a segregação social como uma das principais causas da produção do risco nas grandes cidades (Marandola et al, 2013). A alta concentração populacional “têm também seu peso na equação da vulnerabilidade”, já que diante da desigualdade social e das péssimas condições de vida, determinadas localidades são consideradas “como áreas mais suscetíveis a enfrentar os impactos mais severos das alterações climáticas, como eventos extremos de precipitação e eventos extremos associados à temperatura e a seca”, agravando a condição de risco a que esta exposição suscita (Di Giulio & Vasconcellos, 2014: 42).

Tomado como perigo possível, dano mais ou menos previsível, provocado por condições físicas e/ou sociais determinadas, o conceito de risco corresponde à intensidade ou magnitude de eventos físicos tais como chuvas, terremotos, ventos, etc, combinados com o grau de exposição e de vulnerabilidade das populações de uma certa região. O risco pode se associar à consequência objetiva de um evento natural, tecnológico, social ou econômico, a um indivíduo ou grupo de indivíduos, a uma organização ou localidade (Alves, 2006; Marcelino, 2008; Tominaga et al, 2009).

Segundo a United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UN-ISDR, 2004), a vulnerabilidade corresponde ao conjunto de processos e condições resultantes de fatores físicos, sociais, econômicos e ambientais que aumentam a suscetibilidade de uma comunidade ao impacto dos perigos. Nesse caso, a vulnerabilidade aos desastres ambientais pode ser entendida como a incapacidade de um indivíduo ou grupo de indivíduos de evitar o perigo relacionado a catástrofes naturais ou ao fato de ser forçado a viver em situações de perigo (UN-ISDR, 2004).

Localizado na esfera do imprevisível, o risco como categoria de análise se encontra intimamente associado à vulnerabilidade, justamente por ambos representarem a exposição aos efeitos sentidos em proporções heterogêneas pelos diferentes grupos sociais, tais como a contaminação do solo, da água e do ar, exposição a agentes químicos, e na dimensão humana, a intoxicação e a perda da saúde (Hogan et al, 2001, Hogan, 2005; Marandola, 2005).

No tocante a dimensão humana, Berry et al (2010), salientam que para além dos aspectos biofísicos das alterações climáticas, destaca-se a interface entre as mudanças ambientais e a criação de sentidos e significados para interpretar os problemas decorrentes, denominada de biofilia. Outra interface seria a constituição da angústia ou a perda de consolo decorrente da degradação do ambiente, do lar e do senso de pertencimento, denominada de solastalgia. A biofilia seria a interpretação construída sobre a experiência, e a solastalgia representaria a ruptura do elo entre o ser e seu ambiente, a partir da decepção e da vivência da perda de sentido.

Concordando com Berry et al (2010), o grupo Lemas reconheceu que as mudanças ambientais e eventos climáticos, tais como incêndios florestais, ondas de calor e inundações, e atualmente a própria pandemia Covid-19 situam-se como desastres causadores de impactos em várias dimensões da saúde mental humana, tais como ansiedades advindas de um stress pós-traumático, depressão, sofrimento psíquico, entre outros.

Visto como agente propulsor de riscos e vulnerabilidades, assim como desajustes situados no interior das mudanças climáticas e ambientais, o modo de vida contemporâneo tem gerado sensações de desconforto em relação ao cotidiano, que é experienciado como “foco de repulsão quanto ao bem-estar, tranquilidade e qualidade de vida” (Marandola, 2005: 1).

Mas onde localizar o estudo das dimensões humanas e socioculturais das mudanças ambientais e climáticas no debate ambiental? Essa possibilidade encontra respaldo em campos temáticos que procuram identificar e sistematizar as contribuições que os ecossistemas promovem ao bem-estar humano, em seus diferentes condicionantes, incluindo saúde, bens materiais básicos, relações sociais, segurança e liberdade de escolha (Millennium Ecosystem Assessment [MEA], 2003).

Os serviços ecossistêmicos – nomenclatura denominada a estas contribuições – compartimentam-se em quatro principais tipos de fluxos, ligados aos benefícios gerados pelas funções ecológicas do meio ao ser humano, a saber: (1) serviços de abastecimento – referem-se aos bens essenciais à vida humana que são abastecidos pelo ambiente, como água doce, alimentos, energia etc.; (2) serviços de regulação - dizem respeito às benesses desfrutadas pelo ser humano em função da regulação dos processos ecossistêmicos, como a regulação do clima, regulação de enfermidades, a manutenção da qualidade do ar, a purificação da água etc.; (3) serviços culturais – contribuições imateriais providas pelos ecossistemas às pessoas, através de fenômenos como enriquecimento espiritual, desenvolvimento cognitivo, herança cultural, valores educacionais, valores estéticos, inspiração, senso de localização etc.; (4) serviços de suporte – são os serviços necessários para a sustentação dos outros três serviços ecossistêmicos citados anteriormente, como a formação do solo, a ciclagem de nutrientes e a produção primária – diferentemente dos demais serviços abordados, estes últimos configuram-se como uma categoria de benefícios que impactam o ser humano de forma indireta (Andrade & Romeiro, 2009; MEA, 2003).

Enquanto três categorias de serviços ecossistêmicos endereçam questões essencialmente biofísicas à relação entre o ambiente e a sociedade, apenas uma delas aborda a dimensão da biofilia, categoria expressa pelos serviços culturais.

Nesse aspecto, as discussões do Lemas levantaram a necessidade de se ampliar a reflexão que toca na dimensão humana expressa pelos serviços culturais ecossistêmicos, dando enfoque à subjetividade, encontrando nesta abordagem o espaço epistemológico para construir interface com os conceitos apresentados pelas ciências naturais, compreendendo desse modo como o indivíduo absorve, expressa ou lida com o seu mal-estar diante do cenário de mudanças ambientais e climáticas.

Diante dessa escolha, as atenções do grupo se voltaram a dimensionar o diálogo interdisciplinar entre as ciências naturais e as ciências humanas no interior dos mecanismos de manifestação das emoções, dores, sofrimentos e medos frente às circunstâncias adversas exacerbadas pelas situações de riscos e vulnerabilidade, ligadas ao contexto do desastre associado a pandemia Covid-19.

Como a subjetividade humana se manifesta diante dessa adversidade ecossistêmica no formato da pandemia Covid-19? Como os conceitos podem ser articulados na compreensão da pandemia enquanto desastre, e enquanto fator de impacto nas subjetividades? Como a subjetividade pode responder a esse advento? Qual sua importância e atuação nesse momento histórico global específico?

A Pandemia Covid-19 como desastre e seus impactos na subjetividade

A humanidade se encontra atualmente diante de um cenário distópico3 de desastre no planeta Terra, extremamente complexo, de dimensões que beiram o absurdo existencial. A pandemia Covid-19 representa um acontecimento repentino que, devido a sua intensidade, vem causando impactos em diversas esferas da sociedade, independentemente do grupo social ou “qual área ou campo do conhecimento a que se pertença” (Torres, 2020, p. 358).

As informações a esse respeito têm denunciado a “urgência para lidar com o vírus, com a doença, com a morte e com as profundas consequências para nossa cidade, nosso país e para o planeta” (Nakamura e Silva, 2020: 160).

As estratégias para seu enfrentamento envolvem o distanciamento social e um conjunto de restrições em relação a mobilidade das pessoas, o que cria certo tipo de isolamento considerado como necessário para se conter a disseminação e a contaminação pelo vírus (Nakamura e Silva, 2020: 161). Esses mecanismos de ajustes na esfera da sociedade têm alterado o modo de vida contemporâneo, e cobrado do Estado políticas públicas que “considerem as várias vulnerabilidades em que se encontram os diferentes grupos da população” (Nakamura e Silva, 2020: 163), fortalecendo também a saúde e a educação pública, “como partes estratégicas da rede de proteção”, de forma a abarcar a todos (Ribeiro, 2020: 106).

Compreende-se dessa forma, que o enfrentamento à pandemia envolve decisões políticas que reconfiguram “o lugar e o papel do Estado [...] como uma das possíveis respostas à sensação geral de (im) potência, apontando para caminhos possíveis para a sobrevivência das pessoas, principalmente num contexto de variáveis não previstas” (Nakamura e Silva, 2020: 163).

Em virtude da imprevisibilidade diante dos acontecimentos decorrentes do advento Covid-19, é possível pensar a pandemia enquanto desastre, reconhecendo sua diferença conceitual básica em relação ao seu modo de existência e o “modo de existência de um desastre associado a perigos físicos mais tradicionais” (Lavell e Lavell, 2020: 3-4).

O conceito de desastre - ainda que em um primeiro momento esteja associado a terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas, ciclones e furacões - contempla também processos e fenômenos localizados no cotidiano da vida urbana, em situações como deslizamentos, inundações, erosão, entre outros, que ocorrem devido a causas naturais ou induzidas por ações humanas. Segundo o UN-ISDR (2004) os desastres representam uma perturbação grave no funcionamento normal de uma determinada comunidade ou sistema, cujos efeitos nas pessoas, assim como as perdas e danos materiais ou ambientais, superam a capacidade de resposta e a recuperação dessa comunidade.

Segundo o glossário da Defesa Civil no Brasil, desastre é resultante de eventos adversos, naturais ou provocados pelo ser humano, sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e conseqüentes prejuízos econômicos e sociais (Castro, 1998).

Nessa perspectiva, o presente artigo considera a pandemia Covid-19 como desastre, quando abarca seu significado enquanto “uma grave interrupção da vida diária, rotina, devido a exposição a um evento ameaçador, em condições de vulnerabilidade e falta de capacidade” (Lavell e Lavell, 2020: 3-4).

Vivendo a realidade do não contato físico, da insegurança e da angústia potencializados pelo cenário catastrófico, Ribeiro (2020: 103) ressalta que a “pandemia do coronavírus certamente inaugura uma nova classe de medo global”, que por sua vez toca na dimensão da subjetividade das pessoas em grandes escalas e proporções, ocasionando prejuízos imensuráveis para a saúde mental.

Seixas e Nunes (2017) chamam atenção para a predominância dos estudos que priorizam as dimensões objetivas dos impactos na saúde mental, em detrimento da subjetividade reconhecida enquanto “sofrimento” (Seixas e Nunes, 2017). Por outro lado, as autoras ressaltam que “nos últimos anos, tem-se observado um grande avanço nas pesquisas sobre mudanças ambientais globais em que as dimensões humanas têm sido priorizadas” (Seixas et al, 2014: 52).

No presente trabalho, o conceito de subjetividade é tomado enquanto o conjunto das sensações sentidas pelas pessoas, ligadas aos desejos, medos, angústias, inseguranças, memórias e percepções intrínsecas a dimensão do ser, do agir, capaz de orientar e impulsionar novas configurações da existência material (Guell, 2002; Otner, 2007; Seixas e Nunes, 2017).

Seixas e Nunes (2017) salientam sua importância histórica, política e social nas diversas áreas das ciências humanas, tais como a sociologia, antropologia, psicologia, geografia, nos estudos de gênero e em outras áreas do conhecimento. Otner (2007) ressalta haver certa resistência em incorporar questões ligadas à subjetividade nos estudos que buscam redimensionar o lugar do sujeito no campo das teorias sociais. A subjetividade é para ela “uma das dimensões principais da existência humana, e ignorá-la teoricamente é empobrecer o sentido de humano nas chamadas ciências humanas” (Otner, 2007: 380).

A subjetividade pode se expressar pelo âmbito individual – como estado emocional interno, envolto por sentimentos e ansiedades construídos socialmente, localizados na dimensão da consciência, do sujeito – assim como no âmbito coletivo, das formações sociais e culturais – como força motriz capaz de motivar comportamentos e estimular afetos, propiciar a criação de laços, ou o esfacelamento deles (Otner, 2007).

Vista como uma trama enovelada pela cultura, ocupa a esfera da fragilidade humana, como linha tênue cambiante, que pode se dissolver, mas que, no entanto, se encontra inseparável das pessoas em sua vida material (Guell, 2002). Amplia-se como dimensão social ao configurar-se no coletivo compartilhado (Otner, 2007).

Quando analisada em sua dimensão política, estudos antropológicos buscam compreendê-la enquanto mecanismo de elucidação das relações de poder, ligada à erupção de sentimentos que levam à exacerbação das lutas e tentativas de grupos sociais subalternizados em alcançar o lugar de sujeitos, porta vozes das manifestações de seus direitos na busca por novos contornos sociais que transcendam o lugar da marginalização econômica e sociocultural a que vivenciam (Otner, 2007).

Desse modo, pensar a subjetividade no contexto da pandemia Covid-19, implica em reconhecer que a experiência do desastre impacta diretamente sobre a saúde mental das pessoas, articulando possibilidades de compreensão epistemológicas que vão “além das ciências biológicas e climáticas” (Seixas e Nunes, 2017: 4). Para as autoras:

[...] esses estudos estabelecem predominantemente relações causais lineares entre as mudanças climáticas e os impactos na saúde mental, que costumam ser fundamentados na ciência do clima junto aos dados de epidemiologia (Seixas e Nunes, 2017: 4).

Pensando em termos de relações de causalidade, é possível trazer esta correlação como mediação conceitual, situando-a na relação linear que envolve a mudança ambiental representada pela pandemia e seu impacto na subjetividade humana. Se por um lado as ações humanas têm sido responsabilizadas pelas catástrofes ambientais que ocorrem no planeta devido ao desenvolvimento do modo de vida urbano, por meio da relação de causa e efeito linear, situa-se a subjetividade enquanto linha de chegada dessas mudanças.

No entanto, no contexto da pandemia, acredita-se que a causalidade linear faz um círculo na constituição dessa lógica, alcançando ambos os lados, enquanto causa e consequência. Isso quer dizer que o ser humano, ao ser visto como o agente causador dos desastres ambientais, também é impactado por eles. A roda da causalidade gira e volta, mas não para o mesmo lugar, e sim, para um lugar onde os efeitos estão sendo sentidos de maneira heterogênea, pois se encontram suscetíveis às diferentes localidades geográficas com perfis políticos e socioculturais também distintos. Os impactos da Covid-19 não são sentidos da mesma maneira no mundo.

Ao situar a subjetividade nesse lugar epistemológico da novidade, do inusitado, enquanto evento advindo da esfera das manifestações ligadas a vivência da pandemia, abre-se o campo do conhecimento para a articulação de sua abrangência e potencialidade crítica.

Dentro de atuação política, por exemplo, Nakamura e Silva (2020) consideram que:

No caso da pandemia de Covid- 19, os corpos são distintamente vulneráveis à infecção, ao acesso aos serviços de saúde, ao adoecimento e, portanto, à morte decorrente, entre outras coisas, da ausência de políticas públicas que exigem estratégias sanitárias articuladas a outras iniciativas para responder aos diversos aspectos implicados no necessário enfrentamento da pandemia (Nakamura e Silva, 2020: 162)

Nesse aspecto, há um claro vínculo entre a experiência da pandemia e a maneira pela qual os Estados conduzem as necessárias políticas públicas para seu enfrentamento, para efetivamente conter o avanço do vírus. No entanto, muitos países revelam: “o poder que se transfere aos Estados e suas elites de intervir maciçamente em todos os âmbitos da vida, inclusive no direito a viver como se viu na Itália com as escolhas de médicos sobre quem salvar” (Ribeiro, 2020: 105).

Nas palavras de Ribeiro:

Curiosamente, vivemos no presente pós Guerra Fria outro cenário distópico, com temperaturas invertidas, o do aquecimento global e o do antropoceno, que também causam medos globais sobre o destino da humanidade. Desta vez, o que está em jogo são a sociedade capitalista industrial e consumista com seu modo de vida que impacta a sustentabilidade em escala planetária (Ribeiro, 2020: 105).

Para o Ribeiro (2020: 106), existe também um claro vínculo estabelecido entre as pandemias e as destruições ambientais, operadas pela derrubada dos hábitats originais de certas espécies, espalhando os vírus indiscriminadamente, que alcançam os seres humanos destituídos da “imunidade adequada”, levando a mortes exponenciais e impactando nos medos globais compartilhados por toda sociedade.

Absorvendo essa discussão política e ambiental, o grupo Lemas considerou que o cenário da pandemia no Brasil, por exemplo, trouxe para as subjetividades sensações de isolamento maiores do que o determinado em termos físicos e geográficos em outras localidades. Os brasileiros estão se sentindo desamparados com relação à assistência socioeconômica e sanitária que deveria vir supostamente do Estado. Nesta época pandêmica, o Estado brasileiro tem aproveitado “para fazer passar decretos ainda mais prejudiciais aos mais vulneráveis, beneficiando, ao mesmo tempo, o grande capital financeiro” (Ribeiro, 2020:106).

A população se sente abandonada à sorte dos governos estaduais e da desorganização na distribuição da vacina, que ora abrange um grupo social e ora abrange outro, excluindo os demais que não estão na listagem do momento. Os vínculos sociais estão cada vez mais fragilizados, em decorrência de uma política que pressupõe um tipo de desenvolvimento que exclui as parcelas mais vulneráveis da sociedade, que necessitam inclusive de auxílio econômico para sobreviver. No Brasil vive-se a situação do “salve-se quem puder”, onde cada indivíduo busca sua saída no plano individual, dentro das circunstâncias em que pode alcançar, não contando com o devido amparo e proteção do Estado, em virtude da assistência ser insuficiente, ou no caso dos mais vulneráveis, inexistente.

Guell (2002) ajuda a compreender esta questão, quando não vê sentido na busca por um suposto desenvolvimento de uma cidade, estado ou país que não considere como foco central as pessoas e seus vínculos sociais. Para se construir uma proposta viável de desenvolvimento, compatível às necessidades apresentadas pelo modo de vida contemporâneo, há que se abrir a possibilidade para a criação de perspectivas de ação preocupadas em: “Fazer da pessoa e seus vínculos sociais o centro do desenvolvimento” o que “supõe reconhecer os novos cenários e enfrentar os desafios inéditos que eles nos apresentam” (Guell, 2002: 2).

No contexto de organização e regulação dos sistemas econômicos, políticos, culturais e das instituições sociais, fundamentados em uma proposta de crescimento econômico sustentada pela “cegueira social que causou o caráter absoluto dos mercados” (Guell, 2002: 4), não se visualiza políticas no Brasil, nesse cenário da pandemia, que atuem na direção de um desenvolvimento que promova sustentabilidade, tanto do ponto de vista social, quanto econômico e ambiental.

A lógica do desenvolvimento se torna então volátil e contingente quando as identidades das pessoas, seus sonhos, vínculos e desejos são fragilizados por processos fragmentadores, como crises econômicas ou desastres ambientais, que nesse caso, acabam por enfraquecer os “códigos coletivos de interpretação do mundo”, em relação aos respectivos acontecimentos: “Hoje, quando as culturas se fragmentam e diversificam, a subjetividade individual e coletiva sai como nunca antes da superfície da vida social e torna-se, por conseguinte, mais exposta” (Guell, 2002, p: 2).

Di Giulio & Vasconcellos (2014) consideram que esta questão abre precedentes para a emergência de sensações de insegurança, em decorrência de uma maior consciência em relação à complexidade, imprevisibilidade e falta de confiança em relação às instituições sociais e as autoridades tradicionais.

As pessoas se tornam cada vez mais vulneráveis frente aos novos problemas, abrindo-se às influências dos meios de comunicação, já que não conseguem interpretar, classificar ou dimensionar o tamanho fluxo de informações que recebem sobre os fatos (Guell, 2002).

Da sensação de insegurança emergem os sintomas de fragilidade, a subjetividade se expõe, e se vê desvinculada da proposta de desenvolvimento que orienta o modus operandi da vida urbana. Guell (2002) cita como exemplo o relatório de Desenvolvimento Humano publicado no Chile em 1998, no qual foi possível verificar um considerável desenvolvimento econômico expresso pelo aumento das oportunidades materiais, mas que, ao mesmo tempo, ocasionou um grande mal estar social diante dos processos ligados à modernização, culminando no enfraquecimento da legitimidade das instituições que estabelecem os vínculos e os laços sociais (Guell, 2002: 3).

No caso brasileiro, a insegurança quanto ao processo de vacinação, associada a necessidade de se trabalhar e sobreviver diante da exposição ao vírus, tem ocasionado medos que demostram a fragilidade da atuação política no tocante a seguridade social para o enfrentamento da pandemia.

Os projetos políticos associados às estratégias de desenvolvimento econômico ligadas ao aumento da abundância material e seus benefícios, desconhecem os impactos na subjetividade humana que emergem do rompimento dos vínculos decorrentes das mudanças ambientais no contexto do desastre. “Nosso tempo é especialista em criar ausências” diz Krenak (2020: 26), “do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida”.

E faz um alerta: “hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda [...] A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças” (Krenak, 2020: 45-46).

No contexto pandêmico, esse alarme exaspera as sensações mais sublimes, levando a um lugar subjetivo de angústia e ansiedade nunca vivenciado antes. Ribeiro (2020: 103) denomina essa sensação de horror como “medo global”, visto como “todo temor totalizante sentido por todos os habitantes de um coletivo, na expectativa de uma enorme quantidade de mortes que potencialmente ou de fato atingirá a todos e acabará o mundo conforme foi conhecido até um determinado momento”.

Esse sentir apavorado em relação a quais caminhos seguir para que se possa sobreviver emocionalmente ao risco que a pandemia coloca à vida social, pode ser sanado, talvez, por ações políticas que tocam na esfera do desenvolvimento.

Guell apresenta como possíveis percursos, elos sutis responsáveis por conectar projetos de desenvolvimento e modos de vida às subjetividades, destacando a necessidade de se reconstituir: relações de confiança, fortalecimento de sentidos, reconhecimento dos esforços coletivos e laços de cooperação que contribuam de fato para a organização de uma sociedade que sustente tais projetos: “Então, a viabilidade e êxito de um programa de desenvolvimento depende de sua sustentabilidade social, esta é a medida que as pessoas percebem esse programa como um cenário em que sua subjetividade é reconhecida e fortalecida” (Guell, 2002: 3).

Trazendo essa discussão à gestão política da pandemia no Brasil, faz-se necessário um programa de desenvolvimento que abarque a dimensão sanitária, econômica e socioambiental, para que as subjetividades encontrem seu lugar de acolhimento, sendo fortalecidas pelo sentimento de pertença coletivo.

De todo modo, a reflexão sobre a incerteza pandêmica leva a subjetividade para outras conjecturas causais, quando se considera as diferentes realidades locais.

Para o grupo Lemas, alcançar a compreensão das dimensões subjetivas tanto no âmbito individual como social e potencializá-las diante de um contexto global de intensas mudanças ambientais, pressupõe abertura cognitiva para um campo causal abrangente, impreciso, que transcende o giro linear que situa os impactos das mudanças ambientais nas subjetividades enquanto linha de chegada. O mundo dos sentimentos e sensações, quando incorporado nas análises do desastre representado pelo advento Covid-19, não obedece a parâmetros objetivos e mensuráveis de análise, ao contrário disso, abre-se para a interpretação do descontrole, da imprevisibilidade, do risco, e dos aspectos ligados ao inominável, ao não inteligível, à escuridão, aos ruídos, às angústias, aos erros, aos fracassos. Há que se abrir espaço para os estudos nessa perspectiva.

Nesse momento da reflexão, o Lemas considerou que a subjetividade não corresponde a um conceito com contornos epistemológicos precisos. Sair da sua comensurabilidade foi o caminho escolhido pelos integrantes, devido ao reconhecimento de que para além da sua dimensão científica e epistemológica, há também sua conexão a algo mais profundo, ligado a sensação que nasce da relação do ser com o mundo, tomado como realidade material e concreta que dimensiona um caráter ontológico e ôntico ao conhecimento, singularizando-o em relação às diferentes percepções sobre a realidade, o que transcende a relação de causa e efeito lineares.

Otner salienta que no campo das teorizações sociais sobre o sujeito, há certo cuidado em não se estabelecer o que ela chama de “universalismo ilusório” de ser humano (Otner, 2007: 378), ou seja, não se deve condicionar o sujeito aos padrões designados à compreensão de sua subjetividade, já que no âmbito das lutas e estratagemas sociais “vários inconsistentes acontecem o tempo inteiro” (Otner, 2007: 379).

Subjetividade não se padroniza, não se estrutura, não se define, e para o grupo Lemas, apenas se identifica e se explora enquanto potencialidade conectada à realidade a que se insere.

Sendo assim, o Lemas considerou como condição sine qua non para o desenvolvimento dessa reflexão, o reconhecimento do seu caráter fluido e inconsistente, que perpassa por um caminho diferente da análise formal sobre os impactos das mudanças ambientais a partir de determinados padrões de comportamentos e sensações, como se fossem capazes de abarcar a totalidade, ou no dizer de Otner (2007), a universalidade das expressões na dimensão humana.

A própria compreensão da subjetividade vista exclusivamente como impacto, para o Lemas, é considerada como algo que epistemologicamente não se sustenta no contexto da pandemia, pois nesse cenário distópico, além do medo que se manifesta de maneiras heterogêneas entre os diferentes indivíduos e grupos sociais, podem emergir relações de causalidade que circulem em espirais para meandros sem saída, alcançando “a morte” coletiva, ou processos de destruição difíceis de se atribuir sentidos.

Devido a imprevisibilidade e a inconsistência desse cenário, o grupo Lemas tomou a subjetividade como conceito aberto a precedentes que elucidam aspectos inusitados do ponto de vista das pesquisas e teorias sociais, pois, ao emergir das rupturas dos elos estabelecidos entre os indivíduos e o ambiente, e das mudanças ocasionadas na vida material, rompe-se a linha tênue que sustenta sua conexão com projetos políticos de desenvolvimento e com os modos de vida constituídos a partir do evento do desastre.

Nesse caso, a pandemia Covid-19 evidencia novas possibilidades de configuração e de transcendência a esse círculo de causalidade: ação humana – impacto ambiental – impacto na subjetividade, que pode levar a humanidade ao seu fim, ou a sua própria resiliência.

A subjetividade como continuum dinâmico

Para o grupo Lemas, quanto mais a vida diária é reconstituída na confluência entre o local e o global, em momentos de forte mudança socioambiental, cultural, tecnológica e política, mais os indivíduos são forçados a tomar iniciativas a partir de uma diversidade de opções e, nesse sentido, a subjetividade representa essa conjunção de manifestações do ser em relação a sua existência material no contexto do desastre.

Sendo assim, ela pode ser pensada como continuum dinâmico, ou seja, como mecanismo que engloba os diferentes aspectos que nascem do modo de vida contemporâneo alterado, ampliando o campo cognitivo por não se basear em princípios centralizados na linearidade das relações, provocando questionamentos: O que essa mudança ambiental no formato de pandemia pode trazer em termos de causalidades estabelecidas entre fenômenos materiais e subjetividade?

Para Di Giulio & Vasconcellos (2014), os diferentes níveis de incertezas decorrentes dos efeitos das atividades humanas em áreas de grande concentração populacional - principalmente no que tange a geração e consumo energético, produção industrial, transporte, entre outros fatores que promovem o aumento da emissão dos gases de efeito estufa - não podem ser mapeadas dentro de um nível de previsibilidade contínuo (Di Giulio & Vasconcellos, 2014).

Desse modo, as incertezas decorrentes dos fenômenos da vida material não podem ser desenhadas como uma esfera constituída. É permitido considerar, a partir desses pressupostos, que a causalidade situada entre as mudanças ambientais e as subjetividades expresse dinâmicas abertas a diferentes desenhos, formatos e perspectivas.

Sua compreensão, para o grupo Lemas, parte de um campo analítico aberto a imprevisibilidade, a partir do olhar atento aos processos de descontrole e desregulação das instituições sociais, que consequentemente debilitam o próprio elo com as subjetividades. O que advém do distúrbio das certezas? Que sentimentos nascem dos desequilíbrios socioambientais? Como a vida coletiva compreende e enfrenta traumas, medos e surtos, tomados como mecanismos subjetivos de manifestação da fragilidade diante do contexto dos desastres?

O caminho de reflexão aberto para o enfrentamento destas questões, diz respeito a atuação da subjetividade enquanto força política (Otner, 2007), reorientada pela sua dimensão enquanto processo social, configurado em ação coletiva com potencial transformador (Guell, 2002).

Na literatura sobre mudanças ambientais este caminho está ligado ao conceito de agency, visto como a capacidade de adaptação dos indivíduos (famílias, comunidades, em diferentes culturas) para responder aos diferentes tipos de estressores ambientais, desempenhando um papel de protagonismo na ação coletiva. Geralmente, a dimensão psicossocial que afeta a capacidade das pessoas de reagir frente aos problemas ambientais são mal compreendidos, ou então são raramente integrados às pesquisas atuais (Brown & Westaway, 2011).

O argumento para enfatizar a importância da agency é o de que ela contribui para superar a visão de que as pessoas são impotentes vítimas das mudanças ambientais, ou seja, passivos diante das ameaças (Brown & Westaway, 2011). Visto de outro modo, é como se o conceito de subjetividade fosse tomado sempre como uma consequência abstrata que não oferece a oportunidade de mostrar perspectivas transformadoras, tanto em relação ao ser humano quanto sobre a realidade material deteriorada.

A literatura convencional, por exemplo, vê a capacidade de adaptação às mudanças ambientais como uma esfera ligada ao desenvolvimento a partir da perspectiva estrutural do Estado, ligada à políticas de adaptação ou gerenciamento de riscos voltadas a redução da desigualdade e vulnerabilidade, como algo que vem de fora do âmbito subjetivo, evitando assim a interação com os campos mais profundos das análises sobre as mudanças sociais (Navarrete & Pelling, 2015).

No entanto, Krenak denuncia outro contexto da realidade brasileira que:

Desde os tempos coloniais, a questão do que fazer com parte da população que sobreviveu aos trágicos primeiros encontros entre os dominadores europeus e os povos que viviam onde hoje chamamos, de maneira muito reduzida, de terras indígenas, levou a uma relação muito equivocada entre o Estado e essas comunidades (Krenak, 2020: 38).

Krenak salienta que o Estado sempre contribuiu para a desintegração desses grupos sociais, afirmando que neste momento:

O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera, onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia [...]dando conta de si mesmas sem criar uma dependência excessiva do Estado” (Krenak, 2020: 40).

Na tensão da relação constituída com o Estado, o povo Krenak vivenciou um desastre socioambiental de grandes proporções, em que o rio Doce (Watu), localizado entre Minas Gerais e o Espírito Santo, se encontra atualmente:

[...] todo coberto por um material tóxico que desceu uma barragem de contenção de resíduos, o que nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma. Faz um ano e meio que esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou (Krenak, 2020: 42).

Esse desastre relatado por Krenak, que sujeitou os povos indígenas próximos ao Rio Doce a encontrar formas de sobrevivência para lidar com a realidade, levou o povoado ao mergulho nos aspectos mais sombrios e temerosos da subjetividade humana, mediante a experiência do que Krenac chama de “fim de mundo real”, a descida ao abismo, à escuridão abissal, à loucura dos sintomas do medo e do pânico em suas diversas formas de manifestação.

Neste aspecto, Rolnik (1999) associa a velocidade das mudanças no entorno dos indivíduos como instância de caos na percepção social, e nesse sentido, o abismo abissal se manifesta na experiência da desestabilização, trazendo inquietudes e tensões aos indivíduos, que tendem a acrescer fragilidade e medo por não conseguirem se reconfigurar a partir das novas realidades estabelecidas (Rolnik, 1999).

Nesse momento, quando a subjetividade chega ao lócus epistêmico como falta de perspectiva de ação, como inércia pautada pelo pessimismo individual e social, pensa-se ter alcançado à sua linha de chegada, o seu fim, visto como final mesmo de um processo. A experiência do pânico e do descontrole são vistos como instância perdida. Triste fim. Acabou, não há saída para a subjetividade.

Há que se buscar então, diante da catástrofe do desastre, caminhos epistemológicos e experienciais que abram a possibilidade de se criar outros sentidos para os fenômenos. Dito de outro modo, esse lugar de chegada para subjetividade enquanto fim em si mesma, não permite a criação de uma perspectiva instrumental vista como reação, como reatividade, mecanismo de enfrentamento, para operacionalizar saídas reais às tragédias vivenciadas.

Do ponto de vista político, o grupo Lemas se viu em um beco sem saída - já que as citações anteriores relacionadas a pandemia, e o relato de Krenak (2020), demonstraram que no Brasil a atuação do Estado é negligente quanto aos desastres socioambientais vivenciados - não encontrando um percurso acolhedor para o enfrentamento dos impactos nas subjetividades. Diante desse impasse, o grupo buscou em Guell (2002) e em Krenak (2020) alguns elementos orientadores para restituir a subjetividade ao seu lugar de potencialidade transformadora:

A primeira diz respeito ao reconhecimento da sua necessidade de autonomia e liberdade, assumindo a responsabilidade de transformar a realidade de maneira convergente ao que se sonha coletivamente (Guell, 2002: 4).

A segunda implica em admitir que “não podemos eliminar a incerteza que surge inevitavelmente nas novas formas de mudanças, devemos aprender a conviver com ela”, levando os indivíduos e as instituições sociais a criar novos campos de relações, pautados em aprendizados obtidos pela própria vivência da desordem e do desequilíbrio (Guell, 2002: 5).

De acordo com Guell: “Isso significa um chamado para assumir o risco social que resulta da construção coletiva da sociedade, sendo acompanhado por um pacto social de respeito e fortalecimento dos vínculos sociais”, decidindo “coletivamente, sem respostas ideológicas ou técnicas, o que supõe discernimento” (2002: 5).

A terceira via seria considerar a subjetividade como parte essencial dos processos adaptativos. Isso significa aceitar tudo o que vem com ela, dos medos, pânicos, às sensações de mal estar como sinais que possibilitam ampliar a compreensão das causas, incluindo à crítica e a tomada de consciência sobre a própria origem das circunstâncias vivenciadas, como questiona Krenak (2020): “Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então, por que estamos grilados agora com a queda?” (Krenak, 2020: 30).

Tal questionamento e percepção remetem a devolução política do indivíduo ao seu lugar de sujeito, na expectativa de que este lugar lhe imprima a confiança perdida, instaurando novas formas de ação sobre o infortúnio.

E a partir dessa sensibilização, Krenak convida: “Vamos aproveitar toda nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos” (2020: 30).

Abrir “paraquedas coloridos” significa, nesta discussão, constituir capacidades adaptativas para a subjetividade como válvula de impulso, possibilitando espaços para o inusitado, para a criação e para a inventividade de novas formas de existência, que nascem justamente dos processos de fragmentação da dignidade humana decorrentes das mudanças ambientais irreversíveis ou extremamente graves.

Para finalizar a análise, o Lemas destacou um trecho de Krenak que elucida esse ponto de mutação causal que pode contribuir para o desenvolvimento da frágil subjetividade, trazendo esperança sobre sua atuação na construção de possíveis caminhos adaptativos ao desastre:

[...] me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante de tudo isso? Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais [...] Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial (Krenak, 2020: 32).

E assim, Krenak orienta o ser humano a proteger de algum modo a sua subjetividade, estimulando a abertura às respectivas “poéticas sobre a existência” (Krenak, 2020: 33), para desse modo, ser possível criar perspectivas reais para que as novas ideias apareçam no interior de um ambiente destruído, mas que pode ser reconstituído pela imaginação criativa.

Considerações finais

Reconhecendo o modo de vida contemporâneo como um dos principais vetores causais das sensações de mal estar ligadas aos riscos, vulnerabilidades, que por sua vez estão associados às mudanças climáticas e ambientais, o grupo Lemas tratou de questionar quais seriam as consequências desse modus operandi na dimensão da saúde mental humana, por meio do conceito de subjetividade, associando-o do ponto de vista teórico à vivência da atual pandemia Covid-19.

A princípio, o texto procurou conceituar, e ao mesmo tempo construir as conexões causais que envolvem primeiramente as mudanças ambientais e climáticas e seus impactos na subjetividade, passando pela problematização vinculada aos processos de urbanização e à busca pelo desenvolvimento econômico e material das sociedades contemporâneas, ocasionando situações de riscos e vulnerabilidades associados ao contexto do desastre da pandemia.

A partir da correlação causal linear estabelecida pela articulação desses conceitos, foi possível considerar que a degradação ambiental veiculada pelos processos naturais, altera a base de recursos de que dispõe a humanidade em seu modo de vida urbano, e aumenta com isso a vulnerabilidade social, agravando o impacto das ameaças à vida humana, que culminou no grande desastre representado pela pandemia Sars-Cov-2.

Nesse contexto, o conceito de subjetividade foi tomado como eixo norteador do pensamento, visto como possibilidade de impulsionar processos adaptativos baseados em desconstruções e reconstruções das relações de causalidade fundamentalmente articuladas ao estreitamento dos laços sociais, fortalecendo o papel central do sujeito como condutor do desenvolvimento e da transformação desse cenário no mundo.

As relações de causa e efeito foram convidadas a aceitar a desordem e a entropia, como estratégia existencial para a constituir a reflexão crítica sobre os desastres vivenciados, e ao mesmo tempo, como alternativa para a abertura de espaços na vida real que permitam a criação de dimensões criativas inventadas pelos diferentes povos, desvinculadas dos padrões estabelecidos pelo pensamento científico dominante e pelos Estados.

A subjetividade, do ponto de vista das teorias sociais, não pode ser universalizada enquanto mecanismo de expressão de medos e tensões em relação as mudanças ambientais. Pensada como instância do imponderável, ela leva a caminhos epistemológicos desconhecidos e obscuros, possibilitando novas interpretações e enfrentamentos, vinculados à compreensão da sua dinâmica e fluidez.

Pensada enquanto instância política restauradora de laços coletivos e individuais, ela se situa instrumentalmente como potencialidade para saltos adaptativos e criadores de novas conexões com o ambiente, de modo a instaurar, no tocante a pandemia, a aceitação da incerteza. Enquanto representação, pode enunciar a constituição de signos e símbolos que articulam uma nova conexão do ser à sua realidade.

Reitera-se que a presente reflexão foi desenvolvida por um grupo de pesquisa que vislumbra a construção de outros olhares, para que se ampliem os paradigmas de análise sobre os impactos da pandemia Covid-19 nas subjetividades, permitindo que visões interdisciplinares possam efetivamente oferecer contribuições palpáveis para que a humanidade alce o voo livre rumo a outra perspectiva de existência.

Agradecimento

As autoras agradecem a todos os membros do grupo Lemas, passados e presentes, pela possibilidade real de um debate que acontece desde 2007.

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1 FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

2 CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

3 A distopia corresponde a um termo cunhado pelo filósofo John Stuart Mill que ganhou visibilidade no século XX. O conceito de distopia vem sendo utilizado na interpretação de uma “sociedade atroz, em que os indivíduos que ali coexistem carecem de direitos básicos; e, no universo da obra ficcional, estas prerrogativas são consideradas essenciais para o que se entende por condição humana” (Pereira, 2018: 2). O termo vem sendo utilizado para denominar o cenário da pandemia covid 19, em virtude das suas dimensões catastróficas não previstas anteriormente.